• Crônica do Ataualpa | Por uma bursite

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  • 22/05/2022 08:00
    Por Ataualpa Filho

    Segundo o dito popular, “de médico e louco, todo mundo tem um pouco”. Se isso realmente for verdade, acho que a porção da loucura é maior, uma vez que muitos, pelas intuições do senso comum, acabam dando receitas, indicando tratamentos sem formação profissional. Não vou tocar aqui nos riscos da automedicação, mas no que ouvi durante uma semana, período em que andei com o braço direito numa tipoia por causa de uma bursite.

    Tenho paixão profunda pela cultura popular. Mas tive que conter a euforia. Se fizesse tudo que me mandaram fazer para conter as dores proveniente da inflamação da bursa, talvez tivesse complicações mais sérias. Ouvia atentamente tudo que me falavam, no entanto, fiquei restrito às prescrições médicas…

    Mas, antes de relatar aqui alguns casos inusitados, quero externar a minha gratidão diante do carinho, da preocupação dos amigos. São indescritíveis os sentimentos que despertam quando nos deparamos com gestos afetivos de sólidas amizades.

    Quem já teve bursite sabe que a dor é inteiriça como cantiga de grilo. Além de limitar os nossos movimentos, não tem pausa para o sono. Como as dores chegaram a um estágio insuportável, fui ao hospital. Na triagem, encontrei um enfermeiro, ex-aluno, que, em tom de brincadeira, falou: “Ih, professor! Isso é problema de junta…”

    Entendi claramente a conotação da palavra “junta”, mas não deu para rir. Apenas olhei para o tempo…

    O passado também se reflete na nossa condição física… Há o desgaste natural do viver…

    Com uma pulseira verde, fiquei a esperar paciente pelo atendimento médico. Para iludir a dor, comecei a rabiscar a folha de rascunho que estava dentro do livro que me acompanhava. Ler e escrever em fila de espera estão entre as minhas especialidades:

    “Como repetir esforços/ sem sacrificar mente, músculos e ossos?/ Como carregar nos ombros/ o peso das responsabilidades/ sem sacrificar as articulações?/ A dor sabe esperar o tempo/ para apresentar os nossos desgastes…/ Os traumatismos são físicos e psicológicos…/ Precisamos aprender com os elefantes/ a hora de recolhermo-nos/ com a certeza de que seremos pó/ e não estátua de sal…”

    Depois das injeções que tomei, as dores foram sossegando. Saí do hospital já com uma tipoia no braço direito e com um testado médico de um dia. Como esse atendimento foi no final da tarde de uma sexta-feira, deu para justificar a falta no turno da noite. Não me senti fora de combate: passei a digitar e a usar o mouse com a mão esquerda. A minha esposa levou para a coordenadora do colégio em que trabalho o atestado e a atividade que havia programado para os alunos…

    Como lhe falei, ouvi e vivi situações inusitadas. A primeira ocorreu no elevador do prédio em que moro: um vizinho perguntou se eu tinha sido atropelado. Eu disse que não, tratava-se de uma bursite. Ele foi bem enfático:

    – Isso não tem cura. Você vai ficar com isso pra sempre. Isso é coisa da idade. As dores vão aparecendo, não tem jeito…

    Dessa vez, também não deu para rir. Resignado, respondi:

    – É a vida!…

    Ah! Esqueci-me de lhe dizer que também gosto de ver as manifestações espontâneas das pessoas, pois são mais sinceras, não trazem o pensamento calculado. De chá de pinhão-roxo a óleo de baleia, recebi várias receitas para conter as dores. Acupuntura, Shiatsu, Auriculoterapia foram alguns dos tratamentos da Medicina Oriental que me apresentaram.

    Uma simpática senhora me parou na rua para me receitar o Emplastro Sabiá e gentilmente me ensinou a fazer um exercício fisioterapêutico. De frente para uma pilastra de uma galeria, postou-se paralelamente e esticou o braço, formando um ângulo reto:

    – Você estica o braço assim e começa a girar, fazendo um “ozinho”, depois vai aumentando aos poucos. Vai chegar num ponto que vai fazer um “ozão”. Tem que fazer isso uma vez por dia. Passa óleo de baleia na cabeça do ombro e faz esse exercício que num instantinho você vai ficar bom. O óleo de baleia esquenta um pouco, mas é bom…

    Ainda com o braço na tipoia, carregando uma mochila não mais nas costas, mas na mão esquerda. Saindo de uma escola em direção a outra, resolvi cortar caminho por dentro de um shopping. Deparei com uma ex-aluna do período em que iniciei no magistério. Isso há mais de trinta anos. Ao me reconhecer, ela pronunciou o meu nome de forma exclamativa e disse:

    – Você ainda tá vivo?!…

    Confesso que ri. Só que o riso ficou atrás da máscara. Não houve tempo para esticar a prosa. Apenas guardei o encontro para registrar em crônica. O humor também surge nas contradições…

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