• Crônica do Ataualpa: Manguear

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  • 28/11/2021 08:00
    Por Ataualpa Filho

    Sei que o verbo manguear não é tão pronunciado entre as pessoas letradas. Mas ultimamente tem sido muito conjugado por quem está no trecho em busca do pão de cada dia. Eu o conheci quando tive a oportunidade de participar da Pastoral de Rua em Petrópolis. Na primeira vez que ouvi, achei que se tratava de uma gíria, um vocábulo criado para designar uma determinada prática pertinente aos hábitos da vida nas ruas. Mas, pela curiosidade, pelo carinho que tenho com palavras, fui ao velho dicionário que me acompanha há anos.

    Quando se trata da busca de significação de vocábulo, ainda recorro ao mestre Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. O senhor Google, nesses casos, não é a minha primeira opção. Consulto tambémo VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) da ABL. Gosto de conhecer a etimologia das palavras, por isso, preservo alguns dicionários em casa. É uma delícia passear pelas histórias delas. E aqui transcrevo uma das significações exposta pelo mestre Aurélio:  “manguear: tentar enganar com manhas ou artifícios”.

    Em outras palavras, o mangueio consiste no ato de pedir dinheiro a uma pessoa desconhecida, abordando-a nas ruas. O mangueadorprocura sensibilizá-la para obter o que deseja. É a luta pela sobrevivência. A mangueação aumentou neste período pandêmico. Quem, ao sair de casa, ainda não foi abordado por alguém que precisa de ajuda?

    Hoje eu trouxe esse verbo com o propósito de refletir sobre a questão do empobrecimento da população. E, para aprumar a prosa, transcrevo aqui versos da canção “Vozes da Seca” de Luís Gonzaga e Zé Dantas: “Mas doutô uma esmola a um homem qui é são/ ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão.”

    Na atual conjuntura, o mangueio tornou-se uma prática corriqueira. Uns mangueiam com vergonha; outros, já pegaram o vício. Não sou assim tão ingênuo a ponto de achar que todos que estão nas ruas são santos. Existem os manipuladores, escravizados pelo alcoolismo, pela toxicodependência. Mas acredito que ninguém nasceu para ser mangueador profissional.

    Sei que as abordagens são diversas. O apelo à sensibilidade social ocorre estrategicamente. Cada mangueador desenvolve uma forma de obter o que deseja. A fome, o prato de comida, o remédio, a passagem, o leite das crianças,em suma, cada um apresenta o motivo que o leva a estender a mão para pedir. Nenhum é tão sincero a ponto de dizer que está pedindo dinheiro para comprar droga ou cachaça. Mas há quem verdadeiramente se encontra passando por severas necessidades e opta pelomangueiopara não morrer de fome. Estes também sofrem com o estigma da marginalização sem ter cometido crime algum. É injusta a generalização. É cruel a forma como a sociedade que exalta a meritocracia trata quem não teve a mínima oportunidade de conquistar “um lugar ao sol”. A expressão “ser alguém na vida” ficou mais explícita com a rotulação das pessoas humildes como “invisíveis”.

    O ajudar ou não ajudar consiste em uma decisão pessoal. Cada um tem a liberdade de analisar e optar pelo o que lhe convém. Mas ninguém tem o direito de ofender, humilhar, agredir, em síntese, esculachar quem já vive em extrema pobreza, excluído socialmente. Tenho visto situações humilhantes. Pessoas em condições de rua sendo tratadas com agressividades, esculachadas…

    Todos têm a liberdade para dizer “não”. Mas ninguém tem o direito de humilhar quem lhe pede um prato de comida.

    Quando abordada, a pessoa instintivamente faz uma avaliação: olha a roupa, a etnia, o hálito, a aparência física…, inquestionavelmente, são diversos os critérios que instantaneamente saltam diante da atitude de dar ou não a ajuda solicitada.

    Repito: todos nós somos livres para exercer ou não a caridade. Mas considero covardia as ofensas, as humilhações, o achincalhamento de quem já é chicoteado pelo destino. São covardes os falsos moralistas enriquecidos ilicitamente que desdenham da miséria.

    Prefiro ficar ao lado dos mangueadores a ter que me aliar a quem usurpa o erário da Nação, a quem manipula a opinião pública na prática da corrupção. Aprendi na rua a dor que há nas palavras.

    – Peço encarecidamente: não esculache ninguém nas ruas, nem bata o telefone na cara de quem liga para sua casa em nome de uma instituição filantrópica. É verdade que nem todas agem com rigor e seriedade, porém quem trabalha na captação de recursos não pode ser hostilizado com desaforos que ferem a alma. Você pode dizer não, mas não ofenda. A gentileza não pesa no bolso.

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