• Crônica do Ataualpa: Fidelidade

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  • 19/06/2022 08:00
    Por Ataualpa Filho

    Dessilenciou uma saudade que nem eu sabia que estava aqui no peito quieta sem alarde. Fiquei tão surpreso que resolvi compartilhar. Mas, antes, quero lhe dizer que tenho mais facilidade para sentir o que escrevo do que escrever o que sinto. O que vem de dentro para fora requer coragem para suportar críticas e censuras. Não é tão simples despir sentimentos ou expor ideias que tentam fugir do senso comum. “Imprudente ofício é este, de viver em voz alta”, já afirmara o mestre Rubem Braga. Em quem escreve, a calosidade não se forma na epiderme, mas no coração.

    Não tenho veias poéticas, talvez linguísticas. O mundo das palavras é que me fascina. Quem descala por uma saudade deixa rastro nostálgico, melancólico. O saudosismo entristecido fica mais acentuado quando encontra a irreversibilidade que o destino impõe.

    A morte em si já tem a sua dose de tristeza e, quando chega de repente, em condições trágicas, geralmente abala as nossas estruturas emocionais. O que me fez procurar palavras para descrever o que senti no início da semana passada não foi exatamente o trágico, mas o nostálgico. Embora este tenha surgido daquele. Eu lhe explico pelos fatos, deixando o teórico de lado:

    Cedo da manhã de segunda-feira, subi a rua General Osório em direção ao prédio em que moro. Na mesma calçada, descia uma cachorrinha com a pressa de quem não deseja chegar atrasado a compromisso de hora marcada. De longe, ao vê-la, indaguei-me: “será a Pretinha?!”…

    A dúvida soprou uma leve poeira. Uma alegria repentina surgiu, mas, em segundos, desfez-se: não era a Pretinha…

    Inúmeras vezes, eu a vi naquela mesma calçada ao lado de um senhor que frequentemente ficava ali nas portas dos bares ou sentado no batente do teatro. Aquela alegria momentânea foi que me surpreendeu: deparei-me com a lembrança de uma cadela que, a meu ver, escolhera um dono, talvez pela forma afetiva como era tratada.

    Com o senhor, a quem ela sempre foi fiel, eu tinha, com frequência, uma troca de cordialidade. Cumprimentávamos sempre e, algumas vezes, parávamos para uma prosa rápida. Na última que tivemos foi numa manhã de domingo ensolarada na Rua do Imperador, no ponto de ônibus. Ele me disse que havia passado em um concurso para sargento e iria assumir a patente na semana seguinte. Só estava faltando uns documentos, mas, na segunda-feira, já iria resolver isso antes de ir ao Rio para assumir o posto. Eu o parabenizei, mesmo sabendo que se tratava de uma fantasia. Embarquei no entusiasmo com que ele narrou a sua conquista. A Pretinha, do lado, parecia compartilhar daquela alegria…

    Na segunda-feira, iniciando a semana, estávamos de volta ao nosso cotidiano: ele ali na General Osório com a Pretinha ao lado, eu descendo a rua com a reciprocidade de cumprimentos: o nosso bom dia fazia parte da nossa rotina.

    Essa rotina foi quebrada de forma trágica pelas enchentes que se abateram sobre Petrópolis. A casa dele foi arrastada no deslizamento que atingiu a 24 de Maio. Até hoje eu não sei se a Pretinha também faleceu nessa tragédia, por isso que uma alegria surgiu quando vi aquela cadelinha descendo a rua…

    Às vezes, não temos noção do quanto os fatos rotineiros estão inseridos afetivamente em nossa realidade. Sim, sinto saudade dos cumprimentos desse amigo que a vida colocou em meu caminho. A Pretinha não tinha coleira. Estava ao lado dele por opção. Entre ambos havia um carinho mútuo. A fidelidade canina poderia ser comprovada por várias situações. Mas um fato peculiar tinha a minha atenção: ele pegava o ônibus de volta para casa na Marechal Deodoro. Ela ficava ao lado dele. Quando ele entrava no ônibus, ela subia a rua apressadamente para esperá-lo em casa. Como o ônibus dava uma volta pelo centro antes de subir a 24 de Maio, às vezes, ela chegava primeiro do que ele, apesar do problema que tinha na patinha traseira, provocado por um atropelamento.

    O simples é desarmado. Não carece de formalismo. Traz o espontâneo em gesto de carinho. A humildade nos surpreende, porque fica assim calada na timidez. Se a Pretinha partiu na enchente, com certeza, está ao lado do seu fiel amigo. E ele, após cumprimentar a todos, deve estar contando a suas histórias para Irene amiga do Bandeira.

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