• Crônica do Ataualpa: Confesso que sonhei

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  • 29/05/2022 08:00
    Por Ataualpa Filho

    Antes de tudo, quero lhe dizer que pedi licença a Neruda para fazer este texto com um título alusivo à belíssima obra dele: “Confesso que Vivi”.

    Pablo Neruda está aqui pertinho de mim, na estante da minha casa. Eu o conheci numa época em que a minha inquietação era mais desorganizada, era confundida com rebeldia. No período universitário, o diálogo com ele, com Garcia Lorca, Bertolt Brecht, Vladimir Maiakovski era quase uma terapia: acomodar o silêncio dentro de si diante das injustiças, vendo a liberdade por frestas subterrâneas, é uma tortura…

    “Confesso que Vivi” foi um dos primeiros livros que comprei, quando passei a ter a consciência de que a Arte nos oxigena. A minha convivência com a Literatura é contínua. Para mim, a leitura não é apenas uma questão de prazer, passou a ser também um hábito profissional. Faz parte da manutenção do meu ofício. A linguagem é a minha ferramenta de trabalho. No livro citado, Neruda escreveu:

    “Não se pode viver toda uma vida com um idioma, vendo-o em sua maior dimensão, explorando-o, alisando-lhe o pelo e a barriga sem que esta intimidade faça parte do organismo. Assim aconteceu comigo em relação à língua espanhola. A língua falada tem outras dimensões; a língua escrita adquire uma dimensão imprevista. O uso do idioma como veste ou como a pele no corpo, com suas mangas, suas emendas, suas transpirações e suas manchas de sangue e suor, revela o escritor. Isto é o estilo.”

    Mas hoje, venho aqui lhe confessar que o passado, ultimamente, tem me visitado com mais frequência. As lembranças, de forma nostálgica, estão chegando por meio de sonhos. Não fico caçando explicações, especulando o meu inconsciente para entender fatos que fogem do meu controle. Este contínuo processo de refletir sobre a vida é que me leva a escrever assim compulsivamente. Só que agora dei para sonhar escrevendo. Quando acordo não me lembro do que escrevi.

    Já deixo, ao lado, na cabeceira da cama, caneta e papel, mas ainda não consegui salvar nenhum poema. A delícia de escrevê-lo, mesmo em sonhos, já me satisfaz, porém não consigo transcrever para compartilhar com os amigos.

    Na semana passada, sonhei que precisava fazer um texto para comparar o trabalho poético com a arte performática dos ilusionistas. Se estes, em atos mágicos, movem a realidade para nos levar a acreditar que o impossível, ou o sobrenatural podem ser expostos pelas mãos humanas, os poetas criam ilusões para expor o real. Confesso que passei a noite tentando estabelecer essa relação entre poetas e ilusionistas. No sonho, fiz o texto. Mas não lembro o que escrevi, apenas me recordo que havia o desejo de traduzir a magia de viver pelo poético.

    Todos sabem que um belo poema não nasce em passe de mágica, é fruto de vivência, do trabalho com a linguagem para torná-la espelho e refletir a realidade. Os ilusionistas tentam nos mostrar que o impossível pode ser real. Mas para isso, há estudo, treinamento para dar à prestidigitação leveza e naturalidade.

    E, já que estamos neste campo onírico, vou lhe contar também um pesadelo que tive no mês passado, não sei precisar o dia, mas, com certeza, foi em abril. Acordei assustado e com sede, senti a garganta seca. Veja que devaneio:

    No sonho, fui visitar um colégio em que havia um galpão com muitas estantes de prateleiras enormes cheias de livros. Todos misturados, nada catalogado, parecia mais um depósito do que uma biblioteca. A noção de abandono era visível. Aquela desarrumação levou-me ao desespero. Passei a pronunciar alto o nome dos poetas, dos escritores com quem tenho grande afinidade. Os livros deles começaram a sair voando ao meu encontro, vinham na minha direção, balançado as páginas, sacudindo poeiras e traças. O meu desespero foi aumentando, porque eram muitos. Estava me sentindo sufocado. Mas era preciso salvá-los, tirá-los daquele ambiente inóspito. E, para salvá-los, comecei a assobiar e a correr. Eles vinham voando. Havia livros de autores que não eu conhecia. De repente, todos se rebelaram e voaram em bando. Só os didáticos ficaram lá. Não conseguiam voar. E foi assim que acordei: cansado de tanto correr assobiando com bando de livros atrás de mim, fugíamos do marasmo, do abandono da cultura…

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