Crônica do Ataualpa: Aos que desejam samaritanear
Sempre me sinto tocado pelas manifestações caritativas que revelam o lado solidário de uma população aberta à partilha quando co-movida diante do trágico. As ações humanitárias são mais frequentes depois que as tragédias são consumadas. Lamentamos com muita tristeza as vidas perdidas, principalmente quando temos a certeza de que outras ações poderiam ter sido realizadas com o propósito de evitar as destruições.
A piedade sempre emerge nos corações em que há a preocupação com o próximo. Mas isso não tira o senso de justiça. Consiste também em gesto solidário a escolha de gestores humanos que se preocupam com os menos favorecidos. Reafirmo que não há demônio sem a obsessão do domínio. A possessão, o deixar-se possuir pela ganância do poder é um dos fatores que leva à cegueira da consciência. A insensibilidade passa por essa indiferença que não enxerga a dor do outro.
Quem reside em Petrópolis conhece bem a dor que hoje atinge a população de Recife. Foram registrados 128 óbitos, tendo como causa as chuvas que caíram em Pernambuco. Aqui, na Terra de Pedro, ocorreram 234 mortes em razão das enchentes. E ainda temos pessoas desaparecidas. Aos números citados, somam-se as vítimas da Covid-19 e as vidas ceifadas pela violência urbana. Nesse cenário em que a morte é banalizada, samaritanear é um desafio, embora não falte oportunidade para o exercício da caridade.
O templo é para as orações. Mas o tempo é para as nossas ações. Samaritanear nesta caminhada é um ato de coragem. Quem passa por este mundo e não enxerga quem está caído à beira do caminho não chega à eternidade que o amor conduz.
Os hipócritas exercem bem a demagogia, são mestres na arte de enganar, de fingir. É com o crescimento do trigo que o joio fica mais exposto. Por isso que a prática do Bem recebe tantas críticas, pois expõe a inoperância, as contradições de quem professa o que não faz. A caridade é um ato político. O samaritanismo não é uma religião, não é uma ideologia, é o amor na prática fraterna sem objetivar recompensas materiais. É o amar mesmo sem ser amado.
Não esqueço o dia em que, descendo a rua Marechal Deodoro, conversando com o Padre Quinha, disse a ele:
– Gostaria de ajudar o senhor no seu trabalho…
Com um olhar profundo que enxerga a alma, ele me respondeu com outra pergunta:
– Você já está preparado para as decepções?…
Confesso que não tinha a noção da dimensão das decepções a que ele se referia. A solidão do calvário é um cálice amargo. O Amor é crucificado a todo instante. Apesar das decepções, não se pode deixar de amar. Sem amor, este mundo seria um zoológico. Drummond já afirmara: “amar se aprende amando”.
Samaritanear é a prática do amor sem paixão. É o ato de servir sem olhar a quem. É andar na contramão do ódio. Não podemos desistir. Somos metades. Precisamos da outra metade para sermos inteiros. A ternura vencerá. O Sol é o responsável pela desanoitecência. A Luz vence as trevas.
E, por citar aqui o astro rei, vou lhe contar um fato que atravessou a semana na minha cabeça:
O passado domingo estava lindo; o céu, límpido! O Sol radiante! Bom de ver criança brincando no parque! Depois da missa, saímos a passeio. Fomos visitar uma singela senhora que completara 92 anos. Havia um forte desejo de revê-la. Pegamos a estrada sem pressa. No início da tarde, chegamos à casa dela. Fomos recebidos com o sorriso festivo da alegria. Certifiquei-me de que o tempo nos devolve a criança à medida que o lado racional vai perdendo as rédeas das nossas ações.
– Quem é você?
Foi com essa pergunta que ela me recepcionou. Apenas disse o meu nome. A sobrinha dela, que também a visitava, foi mais além:
– Sou filha da sua irmã! Sou sua afilhada também! Você é minha madrinha…
Ao ouvir o nome da irmã, ela abriu mais os olhos com um ar de surpresa e alegria:
– Ela acabou de sair daqui. Veio me visitar. Mas já voltou pra casa dela…
A irmã a que ela se referira falecera há seis anos…
Para não perder a chance de colher lições de vida, permaneci ao lado dela. Para registrar o encontro em família, uma de suas filhas pegou o celular e começou a fotografar:
– Mãe, olha pra cá! Dá um sorriso!…
Todos nós sorrimos para deixar registrada a alegria da confraternização familiar. Mas volto a lhe dizer: – quem vive para aprender precisa ficar atento…
Depois da dispersão, após a foto, ela riu consigo e falou baixinho:
– Como sorrir sem ter sorriso?
Sabemos que o “xis” para a foto tem um caráter protocolar, nem sempre é espontâneo. Ela riu do faz de conta. Fui samaritaneado…