• Crônica do Ataualpa: A linguagem dos anjos

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  • 03/04/2022 08:00
    Por Ataualpa Filho

    Por alguns segundos, vamos nos distanciar dos problemas do mundo em prosa de alívio. Às vezes, precisamos desenrugar a testa com sorrisos. O riso é melhor do que Botox. Não há desperdício de alegria quando se bem conhece o sabor do viver. De tudo, as coisas de criança é que mais me fascinam. Vejo-as longe das dissimulações.

    Há muito tempo, pelo desafio poético, joguei as sete chaves fora e deixei o peito aberto pelo dizer sem o medo da dor. Desatei-me de todas as certezas presas em relatividades. Fiquei apenas com o Absoluto: Deus.

    Na volta ao nada, quanto mais despojado melhor. Abrir as algemas do que nos prende ao fútil é um esforço hercúleo. O peso da futilidade é o que nos afoga no fundo do poço da mediocridade. É prudente manter os afagos, os afetos e salvar os fetos, vítimas da vaidade. Despir-se das maquiagens. Às vezes, deparamo-nos com vísceras carregadas de joias para ostentar o vazio que há dentro de si. Os pobres homens são ricos em futilidades. Isso independe do poder aquisitivo.

    Há muito tempo também, deixei de guardar segredos. Só retenho aqueles que os amigos depositam em mim. Esses irão para túmulo comigo. Quero ser digno de confiança.

    Para o além-túmulo, só podemos levar aquilo que ficou depositado na alma. O que é daqui fica por aqui mesmo, não sobe. Nessa viagem, o passaporte para o eterno é o amor.

    Pelos ossos do ofício, despejo os meus segredos, sem ordem, sem mensurá-los, em prosa e verso. Não retenho mais nenhuma ideia, nem sentimento. As minhas ruminações são para fora e para dentro. Por ficar assim tão exposto, tento aprimorar-me no uso da linguagem para que as minhas palavras não venham contra mim. O tropeço na própria língua quebra a cara, por isso que o silêncio é uma das armas dos precavidos, é ouro. Poupa-nos da indiscrição. Viver dessilenciado é uma tortura. O desassossego da consciência por culpa é que rouba o sono.

    A imprudência do ofício de verbalizar o pensamento está no risco das interpretações errôneas. O penso é torto, diz o povo. Quem não entende do riscado dificilmente enxerga o preciso risco que expõe o impreciso viver, portanto, não é bom escrever com meias palavras, nem confiar que o pingo seja visto como letra. Seja preto no branco, ou branco no preto, o que se escreve só pode ser lido nos contrastes. E os segredos revelados são protegidos pelas entrelinhas. Nem sempre o óbvio está ao alcance de todos. Há os que não conseguem enxergá-lo. Traduzi-lo é tarefa árdua.

    Para escrever o que de dentro vem, puxado pelo fio da lembrança, carece de coragem. Os meus medos vazam pelos gritos dos silêncios rompidos quando calo em linguagem. Palavrar silenciado.

    Quando exercia o ofício de embalador de rede, queria entender o indecifrável. Ouça:

    De onde vim, antes de mim, vieram dois. Eram gêmeos. Não romperam placenta. Não colocaram pé na terra. Depois de mim, vieram sete em anos seguidos. Por isso me chamam de primogênito. Sou, mas poderia não ter sido. No Nordeste, o destino é imperativo. O que é de sina é ele quem assina.

    Em Teresina, nascido, depois do tino formado, tive a incumbência de olhar pelos irmãos. Um dos ofícios era de embalar a rede para que eles pegassem o sono no vento manso. Só que, depois de ter mamado, de barriga cheia, no meio do calor, com uma brisa no peito, o mano ou a mana danavam a rir, a balançar as pernas, não tinha pressa de dormir, falava uma língua que eu não entendia. Eu não podia sair para brincar, enquanto não dormissem. Quando eu parava de balançar sempre choravam. E, para entreter-me, ficava tentado entender aquela linguagem que não sabia do que se tratava. Um dia, apertado pelas curiosidades, um deles, não lembro quem, entrou em uma prosa gesticulada. Ria, parava, voltava a rir, dava jeito de conversa séria. Fiquei intrigado:

    – Mãe, o meu irmão ficou numa conversa danada, demorou a pegar no sono.

    – É, meu filho, as crianças conversam com os anjos…

    – Eu era assim também?

    – Sim, toda criança, quando bebê, conversa com os anjos.

    – Como eu não me lembro dessas conversas?

    – É! Quando a gente vai crescendo, esquece o que conversou com os anjos…

    Acho que tenho saudade desse tempo que proseava com os anjos, sem conhecer a língua dos homens…

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