Cronenberg discute corpo e arte em ‘Crimes of the Future’
Depois de oito anos sem lançar nenhum filme, David Cronenberg está de volta com um longa-metragem bem diferente de seus últimos trabalhos, como Marcas da Violência (2005), Senhores do Crime (2007) e Cosmópolis (2012). Crimes of the Future (“crimes do futuro”, na tradução livre), que estreia hoje nos cinemas e chega dia 29 à Mubi, é, na verdade, uma espécie de retorno aos seus filmes do passado, que falam de corpo e tecnologia, como Videodrome – A Síndrome do Vídeo (1983) e eXinstenZ (1999).
Mas o diretor garante que não pensa em sua obra anterior quando escreve um roteiro. “Qualquer semelhança é acidental”, disse na entrevista coletiva durante o Festival de Cannes, onde Crimes of the Future passou na competição. “Mas sei que muitas pessoas veem coisas de outros filmes meus neste. Vão haver conexões porque tudo está vindo do meu sistema nervoso.”
No caso de Crimes of the Future, o roteiro tinha sido escrito havia mais de 20 anos. Cronenberg achou que estava ultrapassado, mas seu produtor Robert Lantos releu e disse que, na verdade, era mais atual do que nunca. A trama se passa em um futuro distópico em que os seres humanos têm sofrido mutações. Alguns são capazes de digerir plástico.
Outros, como Saul Tenser (Viggo Mortensen, em seu quarto filme com o cineasta canadense), têm desenvolvido órgãos novos. Em performances artísticas, sua parceira Caprice (Léa Seydoux) retira esses apêndices.
Há inclusive um escritório governamental regulamentando essas mutações.
Uma das funcionárias é Timlin (Kristen Stewart), fascinada por Tenser.
A atriz acha absurdo que a obra de Cronenberg seja percebida como difícil ou indigesta. “Para mim, cada imagem estranha pulsante, de corte, sangrenta, cada machucado em seus filmes me deixa de boca aberta”, afirmou a atriz. “Não me causa repulsa. Tudo o que ele faz eu sinto por meio de um desejo visceral.” Fazendo o filme, ela não tinha certeza do que se tratava. Mas, ao assistir, era como se Cronenberg estivesse expondo seus próprios órgãos. O diretor recentemente vendeu suas pedras nos rins em exibição em formato NFT. “Essa é a metáfora da cirurgia de órgãos, um artista colocando seus pensamentos e visões mais íntimos e ficando vulnerável”, contou ele à AP.
MICROPLÁSTICOS
“Corpo é realidade”, repetiu ele várias vezes na coletiva em Cannes. Cronenberg anda fascinado com a questão da presença de microplásticos no nosso sangue e mesmo na pele. “Nossos corpos têm mais diferenças do que nunca agora, e isso não vai mudar”, observou Cronenberg à AP. Ele citou também as tecnologias mRNA usadas nas vacinas contra covid e CRISPR, de edição genética. E até mesmo coisas mais comuns, como a lente colocada em seus olhos após uma cirurgia de catarata e o aparelho auditivo que, aos 79 anos, ele precisa usar. “Sou totalmente biônico”, admitiu. “Anos atrás, teria sido um problema. Eu teria encerrado minha carreira muito mais cedo porque, sem ouvir e sem ver, é meio difícil fazer filmes.”
“Corpo é realidade” também tem uma dimensão política, ainda mais no contexto da reversão dos direitos ao aborto nos EUA. Mesmo 20 anos atrás, ele imaginava que a discussão sobre controle do corpo seria relevante. “O filme não é explicitamente político”, esclareceu em Cannes. “Mas, para mim, toda arte é inerentemente política por ser uma expressão do contexto, do intelecto, de uma língua bastante específica. Nesse sentido, é política, esteja seu criador consciente disso ou não.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.