• Confissões de um leitor

  • Continua após o anúncio
  • Continua após o anúncio
  • 19/04/2021 14:58
    Por Ataualpa Filho

    Um leitor é algo raro. E se ele tiver um senso crítico, torna-se um coautor, pois acrescenta a sua parcela de conhecimento e amplia a discussão iniciada pela inquietação do escritor.

    Não há dúvida que o leitor é que completa o ciclo literário, consiste em um elemento imprescindível nesse processo. Nenhum escritor ganha notoriedade sem o leitor, pois este é que, ao se identificar com o texto, propaga-o, dissemina-o, fertiliza-o. O texto sai do controle do autor e ganha o mundo. Temos que admitir a verdade que dissera o personagem Mário do filme “O Carteiro e o Poeta”: “a poesia não é de quem a escreve. Mas de quem precisa dela”.

    E, para tornar-se um bom escritor, é preciso nutrir-se de boas leituras.  Se alguém pretende seguir este caminho da linguagem escrita precisa mergulhar nos livros. Nesse campo, a prática conta mais do que a teoria. Não basta ter conhecimento teórico das técnicas de composição, é necessário exercitar e enfrentar a autonomia que o texto adquire à medida que vai se construindo, porque nesse processo, a coerência ganha força e cobra do autor uma conduta dialética tendo como referência a realidade. É diante do real que há o ponto de convergência ou de divergência. A verossimilhança ou a inverossimilhança comumente indeferem na opinião do leitor.

    Ninguém é lido impunemente, está sujeito ao “gostei”, ao “não gostei”; ao “concordo”, ao “não concordo”. Até a indiferença consiste em um posicionamento diante do que se escreve. Não se consolidam os princípios da democracia castrando o pensamento divergente.  No entanto, é fácil constatar o que afirmara Ezra Pound no livro “ABC da Literatura”: “a preguiça está na origem de muitos erros de opinião”. Isso ocorre, porque muitos não se dão o trabalho de ler, estudar para aprimorar os seus conhecimentos. E ficam pautados somente pelo senso comum, sem aprofundar seus argumentos. “O achismo” gira em torno da conveniência pessoal.

    No livro citado do autor americano, a relação entre a leitura com respaldo da realidade está nítida no seguinte parágrafo:

    “Os homens não alcançam compreender os livros enquanto não chegam a ter a certa dose de experiência de vida. Ou, de qualquer modo, homem algum consegue compreender um livro profundo enquanto não tenha visto e vivido pelo menos parte de seu conteúdo. O preconceito contra os livros surgiu da observação da obtusidade de homens que se limitam a meramente ler.”

    Refletir é fundamental. É válido dizer que a razão e a emoção não são incompatíveis no universo literário.Credito e acredito que esta minha obsessão pelo ler e escrever seja trauma de infância. Quando criança, aprendi que o letrar-se era ter acesso a um mundo mágico. Mas com o passar dos tempos, fui descobrindo que a alfabetização é uma necessidade, uma questão de sobrevivência, consiste em lutar pelo pão de cada dia, um jeito de distanciar-se da fome.

    “Antigamente”, quando pegava os jornais, antes de tudo, procurava as crônicas. Havia um prazer em ser conduzido por uma reflexão rica em humor, ironia, despojada e sem perder a seriedade e com uma linguagem sóbria, sem rancor. Sobre leituras matutinas, eu matutava…. Hoje, para ter uma crítica mais humorada, concisa, tenho procurado os quadrinhos, as charges. É possível exercer o senso crítico sem ofender.

    A politização da pandemia afetou também esse lado terno dos jornais. Os artigos de opinião ganharam mais espaço. As verdadeiras crônicas estão reduzidas. Os ensaios literários também estão escassos e a poesia tornou-se raridade. Deparamos, a todo instante, com uma polarização ideológica que limita a análise racional dos fatos. As redes sociais abriram espaços para o “vale tudo”, pela teoria de que os fins justificam os meios, mesmo quando ilícitos. Há uma pandemia de mentiras recheadas de equívocos sofismáticos. O pior da ignorância radicalizada é que ela tenta explicar a sua razão de ser. E, quando visa a interesses econômicos, coloca a vida em segundo plano.

    Tenho citado e re-citado, entre amigos, uma saudade dos textos descontraídos, sem nó de gravata, sem ódio, que descrevem o cotidiano pelas peculiaridades que nos faz refletir sobre esta caminhada da humanidade. Ah! Que saúde de: Sabino, Millôr, Drummond, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues, Armando Nogueira, Wilson Martins, são tantos…

    Últimas