• Com ‘Pança de Burro’, Andrea Abreu se aproxima de Ferrante

  • Continua após o anúncio
  • Continua após o anúncio
  • 21/05/2022 08:00
    Por Ubiratan Brasil / Estadão

    A semelhança não foi intencional, mas observada por críticos e leitores – as personagens Isora e a narradora sem nome do romance Pança de Burro têm uma trajetória parecida à de Lenu e Lila, as amigas da consagrada tetralogia da italiana Elena Ferrante, ou seja, vivem em uma área pobre e usam uma linguagem carregada de dialeto. “Não me senti influenciada, mas também não desconheço a presença da Ferrante em minha história, especialmente na idolatria da protagonista pela amiga”, comenta a espanhola Andrea Abreu ao Estadão, em conversa por e-mail. E, ao contrário da colega de escrita, ela não se esconde sob um pseudônimo e participa ativamente do sucesso de sua obra.

    Publicada em 2020, Pança de Burro (que chega agora ao Brasil pela Companhia das Letras) se transformou em grande sucesso, tendo vendido mais 70 mil exemplares na Espanha, além de ter os direitos comprados por editoras de 21 países e com a garantia de se transformar em filme.

    A trama se passa em Tenerife, a maior das ilhas Canárias espanholas, onde Andrea nasceu em 1995. Reduto de turistas, que buscam suas praias com areias de cor amarela e preta, o local paradisíaco tem também seu lado B, especialmente na região norte, marcada por um fenômeno meteorológico chamado “pança de burro”, no qual nuvens pesadas e baixas formam uma espessa camada sobre a terra, eventualmente com a presença de neblina.

    ÓRFÃ

    É lá onde vivem Isora e sua amiga, que não é nominada. A história se passa em 2005, quando as meninas têm 10 anos e desfrutam das descobertas motivadas pela chegada da adolescência. Órfã de mãe e sem notícias do paradeiro do pai, Isora mora com uma tia e a avó que, além de comandar uma venda, dita receitas absurdas para a menina. Mulheres que se caracterizam pela religiosidade, mas também pela facilidade em proferir obscenidades.

    Já a narradora da história, cujo nome não é dito, vive em uma casa no alto do morro, que é constantemente ampliada para receber novos parentes que nascem ou chegam. A região não é nada agradável, onde um vulcão vive à beira da erupção e os cães são feios como os homens.

    Juntas, as amigas buscam descobrir o seu lugar no mundo em um momento delicado, em que o despertar da sexualidade aciona também mecanismos complexos da amizade feminina, como o amor, a inveja, a “vontade de fazer mal”, o desejo. Garotas com imensa vontade de viver, com sujeira nos dentes e cuja tristeza vem como uma martelada.

    CRUELDADE

    “Eu buscava um olhar infantil honesto e isso necessariamente acontecia deixando espaço para a crueldade”, conta Andrea Abreu, que fez parte da edição dos melhores escritores com menos de 35 anos da revista Granta. “Estou interessada em construir personagens complexos que não se enquadrem nas categorias morais do bem e do mal. Não tenho interesse especial na crueldade, mas na ambiguidade dos personagens.”

    Segundo ela, as meninas têm uma visão de mundo renovada, não automatizada, em oposição ao visual desgastado e cheio de lugares-comuns dos adultos. “Acredito que a linguagem poética tem relação com observar o mundo com olhos renovados, que permitem encontrar novas e diferentes conexões com o cotidiano. Assim, a voz de um personagem infantil é mais próxima da poesia.”

    Andrea apresenta, assim, uma prosa delineada por uma oralidade original, marcada por diminutivos e repetições, e palavras tipicamente canárias, como “guagua” (ônibus). As frases nem sempre trazem a pontuação esperada, um convite para serem lidas em voz alta e, assim, compreendidas.

    “Encontrar a voz dentro do livro foi um processo complicado”, conta a autora. “Parti do princípio de que a ‘correção’ é um valor fundamental na literatura, mas sabia que é de cunho classista e colonial e meu livro tinha um espírito contrário a essas ideias reacionárias. As personagens são duas meninas da serra, da classe trabalhadora, sem vergonha, longe das ideias burguesas do que uma menina ou uma pessoa em geral deveria ser, então a linguagem tinha de ser compatível com o conteúdo.”

    Pertencente a uma geração de jovens escritores acostumados mais ao meio digital que do impresso, Andrea conta seu interesse pelo jogo de palavras. “Somos pessoas acostumadas a nos representar escrevendo o dia todo, o tempo todo. Nosso estado natural é escrever.”

    Pança de Burro

    Aut.: Andrea Abreu

    Tra.: Livia Deorsola

    Cia das Letrask

    192 págs., R$ 69,90 R$ 39,90 o e-book

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

    Últimas