Coletivo Bereia é pioneiro na checagem de temas religiosos
Em março de 2021, quando o Brasil registrava quase 260 mil mortos por covid-19, o presidente Jair Bolsonaro participava da inauguração do trecho da Ferrovia Norte-Sul, em São Simão (GO), quando, ao fazer referência aos danos na economia por causa do isolamento social, afirmou: “A própria Bíblia diz, em 365 citações, ‘não temas’. Mas, se ficarmos em casa o tempo todo e dizer (sic) que a economia a gente vai ver depois… Uma parte a gente está vendo agora o que foi essa política. Qual o futuro do Brasil?”
Ligados na declaração, integrantes do Coletivo Bereia decidiram investigar se o uso do trecho bíblico por Bolsonaro fazia sentido no contexto em que estava inserido, a pandemia. Para essa checagem, pastores, padres e pesquisadores de sagradas escrituras foram ouvidos. A conclusão do coletivo foi de que uma das ideias mais fortes na Bíblia relacionadas à expressão “não temas” é o conceito de “proteção”. A expressão aparece também no episódio em que os hebreus se recolheram às suas casas para escapar das pragas que atingiram os egípcios. O fato tem certa semelhança com os acontecimentos atuais, mas com significado oposto ao mencionado pelo presidente.
Criado a partir de uma pesquisa na Universidade Federal do Rio de Janeiro sobre circulação de desinformação no WhatsApp, o Coletivo Bereia usa trechos bíblicos e consulta com especialistas para checar afirmações publicadas em mídias religiosas. Bereia (hoje Véria, na Macedônia) foi a cidade onde o apóstolo Paulo pregou e suas palavras eram checadas com os evangelhos. O trabalho se estende a redes sociais de lideranças religiosas no Brasil e no exterior e para contas com conteúdos religiosos.
A editora-geral do Bereia, Magali Cunha, disse que política é um dos temas mais checados pelo coletivo. Checadores do projeto constataram que os ministros cristãos e integrantes da bancada religiosa no Congresso Nacional são “fortes propagadores de informações falsas”. Outros assuntos estão no radar do coletivo – como saúde, sexualidade e “cristofobia”, que, segundo a editora, “têm sido bastante usados para dizer que os cristãos estão em perigo porque quando se levantam para criticar algo são silenciados, castrados”.
Identificação
O coletivo é o primeiro especializado em fact-checking religioso. Ao que se sabe, segundo Sérgio Lüdtke, editor do Projeto Comprova, é também o único projeto assim no mundo. O diferencial do Bereia não para por aí. Magali relatou que, após pesquisar o modus operandi de agências de checagem no Brasil e no exterior, o grupo criou sua própria metodologia “que junta jornalismo especializado em religião com fact-checking e com pesquisa voltada para a temática da religião no Brasil”.
Outra característica específica é a constituição da equipe. De caráter voluntário, ela abarca evangélicos, católicos, espíritas e também pessoas sem ligação com a religião, mas que possuam afinidade e interesse na temática. A multiplicidade de percepções e de conhecimentos religiosos potencializa o trabalho do Bereia, que é independente de instituições religiosas, mas conta com o apoio de organizações baseadas na fé.
Tanto o conhecimento especializado em religião quanto a equipe familiarizada com o tema possibilitaram ao Bereia aperfeiçoar sua forma de comunicação com os fiéis ao desenvolver uma linguagem específica e direcionada a partir de fundamentos da crença e mesmo de passagens da Bíblia. Magali disse que esse zelo pela linguagem tem como objetivo fazer com que as checagens alcancem o maior número de fiéis e, assim, multipliquem as chances de se compartilhar a veracidade do conteúdo.
33% confiam em rede própria de informação
O relatório de pesquisa que originou o Bereia, “Caminhos da desinformação: evangélicos, fake news e WhatsApp no Brasil”, aponta que 33,3% dos evangélicos entrevistados confiam mais em pessoas conhecidas do que em veículos jornalísticos e/ou buscas na internet.
Além disso, 13,2% desses fiéis declararam que enxergam pastores e irmãos da igreja como uma fonte confiável de notícias. Na avaliação da pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser) Ana Carolina Evangelista, para se entender os laços entre os indivíduos religiosos e os grupos de WhatsApp é preciso compreender outros aspectos da questão – por exemplo, saber em que situação esses grupos foram criados e por qual motivo.
“Por exemplo, se eu encontro sempre aquela pessoa no meu culto, isso vai criando uma rede. Assim, quando uma informação chega daquela rede, para mim, é verdade porque vem de uma pessoa em quem eu confio muito, que eu encontro todo domingo”, disse.
Confiança
Essa confiança do indivíduo, tanto em amigos quanto em lideranças religiosas, é um tema que o Bereia tenta abordar por meio das ações educativas em comunidades religiosas. Durante as aulas, a troca de conhecimento entre o coletivo e os fiéis tem um único objetivo: garantir a autonomia das pessoas na busca por informação. “Nós não estamos guardando a nossa metodologia. Estamos repartindo com outras comunidades religiosas”, explicou. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.