• Cine Muda: O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, Glauber Rocha

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  • 16/04/2021 13:08
    Por Maitêus*

    Tá com fome? Vai na rua do João Gome, mata o homi e come”, diria minha avó, em confirmação à tese sociológica do diretor que analiso desta vez. Glauber Rocha, o expoente máximo do Cinema Novo Brasileiro que, para além de cineasta, era sobretudo um teórico do cinema do terceiro mundo, afirma sem pestanejar em um de seus ensaios: “A mais nobre manifestação cultural da fome é a violência” e com este postulado pretende resumir os mais de 400 anos de história do Brasil até aquele momento.

    No início de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro o postulado é o mesmo, – um rapaz rodeado de crianças, questionando-as de forma professoral sobre as datas mais importantes da história do país (A Independência, a República, a Abolição da Escravidão e o dia da Morte de Lampião). É com violência legítima, parece afirmar Glauber, no conjunto de sua obra, que o povo brasileiro reage à fome, a mais violenta das condições que um sujeito pode enfrentar. A reação é legítima porque é resultante de outra violência, essa estrutural, quase que sem sujeitos e, portanto, sem crime, mas neste filme Glauber faz questão de pintar o rosto dos responsáveis, de pontuar, de caricaturar, de tirar a foto e identificar.

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    Se nos debruçamos sobre o personagem principal deste filme, Antônio das Mortes, poderíamos até acreditar que, mediante suas confissões e arrependimentos, seria ele o grande vilão simbólico da história do Brasil, o responsável por todas as mazelas e misérias que enfrentamos até os dias de hoje, o perpetuador da fome que vez ou outra volta a nos assolar em diferentes intensidades. Mas não podemos nos enganar, a engrenagem de morticínio e sofrimento, o genocídio do povo brasileiro que se arrasta há 500 anos, funciona perfeitamente bem sem o Antônio das Mortes. Ele é peça facilmente substituível, pode ser descartado no menor sinal de fraqueza, ele só serve para matar, e matar um tipo determinado de gente, gente pobre, gente desterrada, gente despossuída, gente suspeita, e para fazer esse trabalho sujo não precisa de muito requisito. O arrependimento de Antônio das Mortes, depois de ter já enfrentado e assassinado os líderes do cangaço, Virgulino e Corisco em especial, e com isso ter enfraquecido e basicamente dizimado esse movimento sertanejo, nos dá a dimensão dos verdadeiros vilões da nossa própria história.

    O título do filme traz certa ambiguidade para o decorrer da narrativa. É difícil de identificar quem é o Dragão da Maldade, seria o Antônio das Mortes que quer matar o último representante do cangaço? E quem seria o Santo Guerreiro? Seria também o próprio Antônio das Mortes, agora redimido, lutando contra si mesmo e seu histórico? Mas a última batalha do filme não deixa dúvidas. Esse filme e seu título não dizem respeito apenas a personagens fictícios dentro de um roteiro também ficcional. Mais do que diante de um filme estamos diante da história do nosso país, vemos em tela o desvelar resumido, porém cuidadoso e profundo, da história de grande parte do nosso povo.

    O Dragão da Maldade é o mesmo da vida real, no sertão é o coronel dono das terras que priva o povo de plantar e comer, nas grandes cidades é o dono dos imóveis, do dinheiro e do poder, que priva o povo de trabalhar, morar e se governar. Em posição de proteção ao sujeito que se encontra sob o vilipêndio deste dragão encontra-se o Santo Guerreiro, uma figura popular religiosa bastante conhecida, Ogum montado em seu cavalo com sua lança em mãos, São Jorge enfrentando o dragão e materializando o desejo de justiça que qualquer pessoa afetada e sensibilizada pela desigualdade e exploração poderia também desejar, a realização da violência última que faria sucumbir os violentadores de nosso povo, a supressão das opressões, o tiro final no peito de quem nos metralha diariamente, a violência revolucionária que destruiria toda a desigualdade.

    Em outro filme, no entanto, Glauber se debruça sobre as complexidades da realização do ato revolucionário, das questões particulares e minuciosas que se impõem entre o desejo – e mesmo a necessidade – de uma revolução brasileira e a realidade prática e suas limitações. Em Terra em Transe (1967), Glauber aborda questões como o exercício do poder num país de terceiro mundo e o papel da mídia no processo de resistência ou avanço da luta revolucionária. O protagonista deste outro filme, um sujeito convicto da necessidade de promover mudanças estruturais, encontra-se sozinho, abandonado por seus aliados. Toda a amargura que dá tom ao filme talvez encontre lastro na realidade vivenciada por Glauber e simbolize a grande angústia do cineasta. Seus filmes parecem ser um pedido de compreensão, com suas frases de efeito que são tão diretas que parecem um telegrama direcionado ao público, como se convidasse ou exigisse violentamente que os espectadores o acompanhassem na missão de realizar no mundo real o que seus filmes não eram capazes de concretizar, como se tentasse politicamente quebrar a quarta parede do cinema.

    Todavia, a contemporaneidade não nos trouxe mudanças tão fundamentais a ponto de mudar o cenário que vivia Glauber nos anos 1960. Acredito que se nascesse nos anos 2000 o cineasta faria filmes com a mesma temática. O Brasil segue com fome, segue desigual e segue sem futuro. De certo modo não foi necessário que Glauber vivesse por 80 anos ou que ressuscitasse para que continuássemos a vislumbrá-lo nas telonas. Seu cinema está ainda muito presente no que há de novo no cinema brasileiro. O que é Bacurau (2019) se não um eco da luta do sertão nordestino por comida e dignidade sempre presente nos filmes de Glauber? Não haveria semelhanças entre o carnaval cangaceiro e o carnaval colorido de O Menino e O Mundo (2013), ambos combatidos com armas? Quem é o Capitão Nascimento (Tropa de Elite 2, 2010) se não um jagunço contemporâneo que depois de tanto assassinar pobres se apercebe de que o inimigo agora é outro? Agora ou sempre foi? Quem vê a presença dos temas de Glauber no cinema brasileiro contemporâneo pode acreditar que ele estava à frente de seu tempo, talvez estivesse mesmo, mas a questão principal é que o Brasil é quem permanece parado no tempo. Os problemas que o diretor abordou em 1960 eram os mesmo do século anterior, não à toa em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) ele consegue conectar com facilidade a revolta de Canudos, um acontecimento do século XIX, com o fim do Cangaço, acontecido no meio do século XX. Talvez não precisasse de muito esforço para fazer a conexão desses dois eventos com a Inconfidência Baiana no século XVIII, com o Quilombo dos Palmares no século XVII ou ainda com a resistência indígena à invasão e domínio português no atual estado do Espírito Santo no século XVI.

    Os ciclos de exploração da terra começam e terminam nesse país, vem o ciclo do café e vai-se o do açúcar, mas o ciclo de exploração do nosso povo parece nunca ter fim. Os idiomas que identificamos por aqui são volumosos, só os indígenas somam mais de 200, a origem do nosso povo também é diversa, e até mesmo o nosso território passou por muitas mudanças ao longo da história, nossa bandeira, o nome oficial e a capital, tudo isso já sofreu transformações em algum momento, de modo que se torna uma atividade difícil determinar o que é essencialmente brasileiro, mas o projeto de genocídio de nossa gente, a mais pobre principalmente, parece ser o que mais bem caracteriza o Brasil como país.

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    *Maitêus é petropolitana, formada em História pela Universidade Católica de Petrópolis(UCP) e aluna do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Maitêus explica que a coluna ‘Cine Muda’ surge como uma forma de popularização da “sétima arte”, inserindo o leitor/internauta na história do cinema.

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