Cine Muda: M, O Vampiro de Dusseldorf, Fritz Lang
Em M, O Vampiro de Dusseldorf nos deparamos com um debate moral complicadíssimo de ser solucionado e que faz eco até os dias de hoje, quase cem anos após a estreia do filme. Não surpreende que o diretor Fritz Lang, que já passa pela terceira vez aqui pela coluna, tenha escolhido abordar a moralidade pública neste que é um dos seus melhores filmes, apenas atrás de Metropolis. Em suas outras duas obras aqui abordadas, o monumental Metropolis e o noir Um Retrato de Mulher, o tema também se instala, ainda que não se apresente de forma tão central como neste filme.
Não é novidade também que desde sempre os moralistas se utilizaram do discurso de defesa das crianças para impor seus pensamentos retrógrados, de comunistas comedores de criancinhas até mamadeiras eróticas, não falta criatividade e mentira para os agitadores do conservadorismo mobilizarem a sociedade através de um dos instintos mais arrasadores da humanidade, o de proteger suas crias. Aqui, Fritz Lang articula esses medos aflorados e os organiza a fim de construir um verdadeiro tribunal – metafórico e literal – ao final de seu filme.
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Ao longo da trama nos é apresentado o pavor de uma cidade que se vê atacada por um inimigo invisível. Suas crianças estão sendo assassinadas por um psicopata e a polícia, a despeito de todos os esforços, não é capaz de encontrá-lo. Incomodados com a onipresença policial em todos os cantos da cidade, os bandidos mais poderosos da região se juntam com a finalidade de encontrar o assassino, visando dessa forma dispersar os ímpetos policialescos que justificam a presença da polícia em todos os lugares.
O que começa, no entanto, como uma caçada visando os próprios interesses, por parte dos bandidos, se torna, no último ato do filme, uma discussão moral a respeito do direito à vida, da eficácia da justiça e seus limites. A surpreendente, e perfeitamente justificável, troca de papéis que observamos no final do filme, entre a polícia, chegando para salvar a vida do assassino e os bandidos sendo impedidos de “fazer justiça”, é talvez o símbolo daquilo de mais poderoso que esse filme apresenta. O que corrobora para elevar sua qualidade é também a complexificação do debate, ao apontar as contradições daqueles que desejavam fazer justiça, já que não passam de bandidos (alguns deles assassinos) buscando fazer juízos de valor e até mesmo relativizando os próprios atos para justificar o linchamento do assassino de crianças, num impulso que parece muito mais guiado pela sede de violência do que pelo desejo de tomar uma atitude justa.
Os bandidos-juízes escarnecem da capacidade da justiça de cumprir suas funções, a presença deles mesmos, livres, é uma denúncia dessa incompetência, e o desejo pela morte daquele assassino que estão a julgar caminha no sentido de desmoralizar as capacidades da justiça, desse modo outorgam para si a capacidade de definir quem é bandido e quem não, de forma mais eficaz que a próŕia justiça, e com isso anulam sobre si o julgamento de bandidos, afinal de contas seriam mais justos e eficazes que a própria justiça que não os consegue prender.
Ao final fica o questionamento para o público: aquele homem deveria ou não ser assassinado para que se evitasse a morte de outras crianças no futuro. Esse é um dilema muito parecido com aquele proposto pela filósofa britânica Philippa Foot, em que ela propõe a existência de um trem desgovernado que parte em direção a quatro pessoas amarradas sobre os trilhos e que inevitavelmente morrerão a menos que você acione a alavanca que fará o trem desviar de sua trajetória, se encaminhando para uma outra onde apenas uma pessoa se encontra amarrada sobre os trilhos e também morrerá inevitavelmente caso o trem passe por cima dela. Normalmente fica mais fácil tomar uma decisão diante deste dilema quando sabemos quem são as pessoas em questão, e sendo uma delas um assassino tudo parece ainda mais fácil. Porém, numa sociedade que declara ter a vida como seu valor principal, essa escolha é tão hipócrita quanto a daqueles bandidos que decidem sobre a vida e a morte de um outro bandido. Se a vida é o valor absoluto, não faz sentido distinguir sobre qual vida vale mais ou decidir que uma vida deve ser extinta para a existência de outra.
Assim como para o dilema não há uma resposta definitiva e isenta de contradições, para o filme e para a realidade da segurança pública no Brasil e no mundo também não há. Dois grandes conceitos dominam o debate público na contemporaneidade, o humanismo e o cristianismo, e em ambos a vida é teoricamente posta em primeiro lugar, não importando quem seja o indivíduo ou o que tenha feito. Discordar desse preceito pressupõe a ruptura com esses princípios e pressupõe também assumir que a própria vida de quem faz tal declaração não tem valor absoluto, é o risco que se corre por cair na armadilha do justiçamento.
Por fim, dois elementos técnicos precisam ser ressaltados para o bem e para o mal. Primeiramente é necessário ressaltar sua primorosa montagem paralela, onde somos levadas de um núcleo a outro da trama sem qualquer introdução, de forma abrupta, fazendo com que o filme ganhe uma dinâmica e desenvolva uma linguagem claríssima, que consegue comunicar muito bem a posição de cada personagem na história sem precisar dos ainda tão recentes intertítulos que o diretor acabara de abrir mão. É verdade que Fritz Lang ainda é muito dependente do texto escrito em seu filme, com muita recorrência surge na tela um cartaz, uma capa de jornal ou uma carta, mas mesmo assim a linguagem visual do filme é substancial no processo comunicativo. Por outro lado, negativamente se destaca a sonorização da obra, que claro deve ser contextualizada, afinal não fazia nem quatro anos que o cinema havia adquirido a capacidade de sincronizar som, ou seja, de reproduzir som sem a necessidade de um músico tocando simultaneamente na sala de cinema, o que nos permitiu escutar a voz dos personagens, por exemplo. No entanto, é necessário destacar a completa ausência de som ambiente em algumas cenas, que parecem deslocadas do tensionamento que o filme provoca. Por outro lado, mesmo sem trilha sonora, o filme consegue desenvolver um drama musical peculiar e marcante através do assobio do personagem principal.
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* Maitêus é petropolitana, formada em História pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP) e aluna do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Maitêus explica que a coluna ‘Cine Muda’ surge como uma forma de popularização da “sétima arte”, inserindo o leitor/internauta na história do cinema.