• Cine Muda: Ladrões de bicicleta, Vittorio de Sicca

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  • 07/05/2021 08:00
    Por Maitêus *

    Por vezes, passaram pela coluna Cine Muda filmes que carregavam características neorrealistas, normalmente rodados e projetados entre os anos de 1945 até os fins dos anos 1960, esses movimentos cinematográficos de diversos países que foram influenciados pela estética neorrealista costumavam trazer consigo a tentativa de representar a crueza da realidade, especialmente aquela realidade dura dos anos pós Segunda Guerra. Até mesmo no Brasil, onde não se viu a guerra se desenrolar em nosso território, também surgiu um cinema com influências neorrealistas, afinal, a miséria vivida por aqui tinha ares de perenidade. Mas o locus de origem dessa cinematografia tem suas raízes na Itália, onde surgiu e se destacou internacionalmente.

    Este país que primeiro foi invadido e dominado pelos alemães e por fim invadido e libertado pelos países aliados, tornou-se um tapete para a marcha das tropas de todo o mundo. A destruição, a insegurança e a miséria que assolava a Itália se estendeu por toda a parte e, além de servir de material narrativo para as histórias, servia também de subtexto para a realidade da produção cinematográfica. Para além do marco estético que identifica o cinema neorrealista, há também uma ética que permeia sua concepção, existe um compromisso com a observação mais do que uma necessidade de simulação do real, há antes de tudo uma perseguição do sujeito e das situações do que sua prévia concepção.

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    Os cineastas desse período também são acometidos pela escassez, desde equipamentos até de filmes que estavam sendo produzidos em outros países. Toda essa escassez reflete-se na produção cinematográfica, os cineastas encontram-se diante do desafio de fazer filmes com muito pouco daquilo que estava tradicionalmente disponível na indústria, encontramos no neorrealismo um cinema que beira o artesanal, a câmera na mão se assemelha a uma agulha de costura quando comparada ao maquinário das produções estadunidenses que produziam tecido narrativo em larga escala. O assunto que deveria ser abordado nesses filmes também não poderia fugir muito do observado no real, o figurino não poderia ser reinventado, os cenaŕios tinham que ser aproveitados daqueles vistos pela janela e os atores são por vezes sujeitos comuns interpretando a eles mesmos. Este foi, de certa forma, um passo interessante na história do cinema em direção a um processo de popularização, o filme ficou mais perto do público, mais transparente, e talvez por conta disso tenha se desencantado e cativado um público muito inferior ao alcançado pelas produções grandiosas, cheias de efeitos especiais e investimentos milionários. Mas apesar disso, o neorrealismo se concretizou como ferramenta de análise e crítica social, como ferramenta para pensar o mundo.

    Em Ladrões de Bicicleta, dirigido por Vittorio de Sicca, temos muitas das características neorrealistas, se não todas que são normalmente enumeradas para amarrar o movimento como tal. O filme tem como protagonista um trabalhador desempregado, completamente empobrecido, que se encontra na situação de ter que penhorar seus lençóis de cama para conseguir uma bicicleta que lhe permitiria ser aceito em um emprego. O drama desse personagem, Antonio Ricci, já está prenunciado no título do filme, seu destino é inevitável, há um roubo prenunciado, e pela importância que sua bicicleta tem na história o drama ganha status de tragédia. O filme não tem a pretensão de romper com essa expectativa, o que o torna interessante é que estando no plural, a palavra ladrões nos indica que a prática de roubo é comum e promovida por vários sujeitos, de modo que o filme não retrata um roubo singular – apesar de contar a história de um – e sim uma rotina criminosa presente nas ruas de Roma.

    Por vários momentos antes do roubo se efetuar há uma brincadeira em que a expectativa do público vai sendo trabalhada, a bicicleta fica exposta, às vezes sozinha, sob cuidados de estranhos, como se naquele momento fosse inevitável que ela fosse roubada, mas ainda não é o momento do roubo. Porém, a maior sacada do filme não está na expectativa de quando o roubo vai acontecer, ele ocorre até que relativamente cedo no filme, a grande revelação está em desvelar quem é o ladrão. Num ponto do filme, em que acreditamos estar vendo na tela o responsável pelo roubo, tudo parece ser volátil, nada se confirma e vemos o protagonista no limiar de cometer uma injustiça e tornar-se vilão.

    Um personagem importantíssimo na história é o filho de Antonio, o menino Bruno, que o acompanha ao longo de toda a busca para tentar recuperar a bicicleta roubada. O menino é o responsável por causar constrangimentos ao pai pela sua simples presença, já que Antonio quer manter sua imagem de herói na cabeça do filho. O olhar de Bruno, apesar de inocente é inquisidor, impõe a Antonio uma limitação a mais nas suas ações de perseguição, a conciliação entre sua imagem na cabeça do filho e suas atitudes desesperadas entram em conflito. A projeção mental que Antonio faz do ladrão é contrastante com a sua, enquanto o criminoso pode fazer o que quiser, já que nem a polícia pode capturá-lo, ele enquanto trabalhador, cidadão, pai e marido tem que cumprir com as expectativas estabelecidas e encontra a todo momento obstáculos para encontrar a bicicleta e restabelecer-se.

    É, por fim, numa atitude de despachar o filho para casa sozinho, depois dele o ter feito companhia ao longo de todo o filme, como se simbolicamente abrisse mão das suas posições na sociedade e se libertasse em direção ao campo da marginalidade, que Antonio dá um passo final e revela para o público quem é um dos ladrões de bicicleta, estava ali na nossa frente esse tempo todo.

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    *Maitêus é petropolitana, formada em História pela Universidade Católica de Petrópolis(UCP) e aluna do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Maitêus explica que a coluna ‘Cine Muda’ surge como uma forma de popularização da “sétima arte”, inserindo o leitor/internauta na história do cinema.

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