• Cidade berço do Bolsa Família é esquecida pelo Congresso e excluída do Orçamento

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  • 19/09/2022 15:32
    Por André Shalders, enviado especial; Cecília do Lago e Augusto Conconi, especiais para o Estadão / Estadão

    No sopé da Serra das Confusões, no semiárido piauiense, Guaribas ficou conhecida nacionalmente por apresentar perspectiva de vida nos padrões de países pobres da África. A 660 quilômetros de Teresina, a cidade virou local de testes do programa Fome Zero, que mais tarde daria origem ao Bolsa Família. Ao longo de quase 20 anos, o município conseguiu melhorar indicadores sociais, mas continua entre os cem com o menor Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) do Brasil. Mesmo assim, seus 4,5 mil moradores – antes eram 4,2 mil – são esquecidos pelo Congresso na divisão de recursos federais.

    Ao concentrar os votos num candidato a deputado federal derrotado nas eleições de 2018, Guaribas ficou sem parlamentar para defendê-la na partilha das verbas de Brasília – e terminou prejudicada na distribuição do dinheiro nos últimos quatro anos. Como mostrou o Estadão, o fenômeno dos “desertos políticos” é nacional. Guaribas é uma das 522 cidades penalizadas por concentrarem votos em candidatos não eleitos à Câmara. Nessas cidades vivem 13 milhões de pessoas.

    Na mesma região de Guaribas, no sul do Piauí, há outros 17 municípios ignorados no repasse de verbas. A “capital” do Fome Zero e do Bolsa Família é a última no traçado da PI-470, depois da cidade de Caracol. Em Guaribas, as principais ruas foram asfaltadas; outras são pavimentadas com paralelepípedos e todo o restante é de terreno arenoso. As casas são simples e têm reboco; aqui e ali se veem construções de tijolo de barro aparente.

    Água

    A moradora Raimundinha Correia da Silva Rocha, de 61 anos, lembrou o tempo em que tinha de caminhar quilômetros todos os dias para buscar água, o que tornava a vida “trabalhosa”. A água chegou à torneira da casa dela e o benefício do Bolsa Família, hoje Auxílio Brasil, caiu na conta. Raimundinha disse, porém, que a saúde continua “ruim”. Para buscar atendimento, a família precisa ir a São Raimundo Nonato, a duas horas e meia de distância em estradas precárias.

    Nos últimos quatro anos, a prefeitura de Guaribas recebeu 33% a menos de emendas parlamentares de todo tipo por morador, na comparação com a média das cidades pequenas (menos de 10 mil habitantes) do Piauí. Foram apenas R$ 2,6 milhões, desde janeiro de 2019. O município também não recebeu nada do orçamento secreto, mecanismo criado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) que repassou aos parlamentares a decisão sobre onde alocar dinheiro público sem seguir critérios técnicos, o que contraria a Constituição e as leis orçamentárias.

    Em 2003, o Estadão esteve em Guaribas. O agricultor Germano Mariano da Silva, à época com 49 anos, foi entrevistado. “Aqui tem muita ‘carenteza’, mas pior que a da fome é a da doença”, disse na ocasião. Em junho passado, a reportagem reencontrou Germano. Os cabelos agora são grisalhos. A maioria dos oito filhos deixou Guaribas. De lá para cá, a cidade ganhou calçamento, energia elétrica, água encanada e internet, mas o problema social persiste.

    Guaribas avançou com a chegada da água encanada e do calçamento ao centro da cidade, mas ficou nisso. “Na oportunidade que eu fiz a entrevista, tem uns 20 anos, eu falei sobre a água. A ‘Guariba’ era pobre e ‘descoligada’ do Brasil”, relembrou. Na zona rural da cidade, as estradas continuam precárias e o acesso à água encanada é intermitente, quando existe.

    O comerciante Alaylldo Dias de Miranda, de 33 anos, disse que os moradores enfrentam problemas de energia, precariedade das estradas e falta de renda. “As estradas municipais, que dão acesso às outras cidades, ainda é (sic) tudo de terra”, afirmou. “Na questão do emprego, a maioria vive da roça. Fora isso, só os aposentados e quem é concursado.”

    Derrotados

    Os votos de Guaribas na eleição para a Câmara, em 2018, se concentraram nos ex-deputados Paes Landim (PTB) e Heráclito Fortes (União Brasil), que não conseguiram se eleger. Heráclito obteve quase 40% dos votos da cidade. “Nesses municípios todos (do sul do Piauí), eu arrumei algumas verbas de infraestrutura, calçamento. Mas depois o PT e o Ciro (Nogueira, ministro da Casa Civil) vieram para cima de maneira impiedosa”, queixou-se Heráclito. Atualmente, ele vive em São Paulo e não é candidato em outubro.

    Guaribas é comandada pelo prefeito Joércio Matias de Andrade (MDB), ligado a Heráclito. O vice Joziel Alves (PT) tem na ponta da língua a explicação para a exclusão da cidade do rateio das verbas: os políticos locais são oposição a Ciro Nogueira. “Para os prefeitos que o apoiam ele libera recursos. Ele é o dono da caneta. Para cá é nada”, afirmou Alves.

    Líder do Centrão, o ministro ganhou de Bolsonaro o poder inédito de deliberar sobre o orçamento. Assim, João Costa (PI), sua base eleitoral, é a campeã nacional de verbas do orçamento secreto. Procurado, Ciro Nogueira não respondeu.

    Crédito

    Para os políticos, faz sentido beneficiar prefeituras controladas por aliados, já que é mais provável que os recursos se transformem em votos, avaliou o cientista político Fernando Meireles. “Eleito, o deputado procura em sua base onde tem um prefeito que possa mobilizar votos para ele. Você não tem como estar no município o tempo inteiro, mas tem alguém lá que pode fazer propaganda e dizer: ‘Foi o deputado tal que trouxe o dinheiro para a gente construir essa escola'”, disse Meireles.

    Na Ciência Política, a prática é chamada de “credit claiming” – ou “obter os créditos”. A Constituição, porém, exige que a distribuição siga critérios socioeconômicos, não eleitorais.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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