‘Chuva Negra’ retrata relações humanas e familiares com personagens diversos
Sem perder muito tempo, a série Chuva Negra, exibida no Canal Brasil às sextas-feiras a partir de hoje, 24, já deixa evidente seu tema central: as novas relações familiares. A trama, afinal, acompanha histórias de diferentes famílias, cada uma com suas particularidades. “É sobre relações humanas”, sintetiza o diretor e também ator Rafael Primot ao Estadão. “A gente naturaliza essas relações com personagens bem diversos. A gente tem o dever de criar o espelho de quem está em casa e quer se sentir representado.”
Tudo começa com a história dos irmãos Zeca (Marcos Pitombo) e Vitor (Primot), que precisam cuidar do irmão caçula Lucas (João Simões), um adolescente de 16 anos com Síndrome de Down, após a morte dos pais, interpretados por Julia Lemmertz e Zécarlos Machado. Para isto, terão a ajuda de Julie (Vanessa Giácomo), mulher de Vitor; Micha (Leona Jhovs), mulher trans acolhida pela mãe dos protagonistas; e Tia Yara (Denise Del Vecchio). É, já pra começar, uma família em transformação – mas sem querer isso, claro.
Além disso, Chuva Negra investiga os vários tipos atuais de amor. Uma das histórias da série tem como personagem central o policial civil Rocha (Kiko Pissolato), que tem uma relação homoafetiva com Orlando (Dudu de Oliveira), professor de educação física. Juntos, cogitam adotar uma criança. E Micha, vivida pela atriz trans Leona Jhovs, tem um papel importante na vida dos irmãos, mas sofre preconceitos dentro da própria família. Tudo isso sem complicar demais na representação dos personagens, naturalizando o que é visto.
“Como que o gay, que nunca teve uma representação feliz nos livros, filmes e na televisão, vai saber que é possível ser feliz? Tudo é sempre muito trágico ou ele é apenas muito amigo de alguém. A gente precisa naturalizar a existência dessa pessoa. Nós, espectadores, quando vemos isso na TV, naturalizamos isso na vida”, diz Primot. “Toda vez que entrar uma trans, por exemplo, e o assunto for como é difícil se relacionar, o tema vai ser sempre isso na vida. Mas, se ela simplesmente faz parte da família, o assunto muda.”
Rafael conta que tudo começou quando ele escreveu um curta-metragem, há “milhões de anos”, depois de assistir a um filme belga chamado O Oitavo Dia. “Fiquei muito mexido com o filme. Queria montar a história no teatro e fiquei com uma pulguinha atrás da orelha”, diz ele, citando esse filme sobre um vendedor infeliz e um paciente de um hospital psiquiátrico. “Depois, o Canal Brasil me procurou e a ideia de curta, sobre uma família que o filho mais novo tinha Síndrome de Down, virou uma série com elementos contemporâneos”.
Ele, então, mexe com a estrutura de uma família bem tradicional, de comercial de margarina, para transformar de acordo com a visão de Rafael sobre o que vê por aí. No processo, o cineasta também se colocou na tela como um dos irmãos – ele também já tinha acumulado funções em Todo Clichê do Amor. Mas, na série, as coisas são mais intensas.
“Por cuidar de várias coisas, você fica com projetos mais autorais. Gosto de ter essa experiência. Mas fazer uma série foi bem difícil, bem desgastante, mas muito interessante em uma primeira experiência”, explica. “Ia ao set muito decupado, com as coisas bem certinhas para o que eu ia filmar. Por ser uma produção de baixo orçamento, precisa saber o que desistir caso não desse tempo ou, se sobrasse, o que poderia filmar a mais. Na hora do ‘ação’, o diretor só olha pra tela. É nesse momento que vou brincar na cena.”
Para contar todas essas histórias, divididas em 10 capítulos de 30 minutos cada, Primot abraçou um formato que geralmente é deixado de lado: o melodrama. “Adoro o melodrama. Somos latinos, é um formato que faz parte da gente”, explica. “E, dentro do melodrama, você pode ter um certo bom gosto e usar o melodrama como uma referência para a história, não exatamente na maneira que você vai construir aquilo. E, afinal, não tem como falar de relações humanas sem não passar perto do melodrama.”
Dessa forma, é interessante notar o contraste que Rafael adota, conscientemente, entre a linguagem usada (com o melodrama geralmente associado às novelas e coisas de outros tempos) com essas discussões sobre novos relacionamentos familiares, por exemplo. “Eu sei que não estou descobrindo a pólvora com a série”, diz. “Mas falo sobre assuntos que acho relevantes com experiências que precisam ser divididas neste momento.”