Choque entre duas rainhas traz à cena o debate sobre mulheres no poder
Durante uma viagem a Londres, em junho de 2019, a atriz e produtora Virginia Cavendish encontrou em uma livraria uma nova edição de Mary Stuart, peça escrita pelo alemão Friedrich Schiller em 1800. Era uma adaptação do dramaturgo e diretor inglês Robert Icke, conhecido pela habilidade na modernização dos clássicos, para a história das rainhas Mary Stuart (1542-1587), da Escócia, e Elizabeth I (1533-1603), da Inglaterra, que fez algum barulho nos palcos londrinos entre 2016 e 2017.
Com o seu exemplar debaixo do braço, Virginia entendeu que o texto, centrado nas contradições de duas mulheres tragadas pelo jogo político, renderia uma discussão atualíssima nos palcos brasileiros. Em sua memória ainda parecia latente o processo de impeachment contra a ex-presidente Dilma Rousseff e lhe gerava espanto a crescente exploração da religião como ferramenta de doutrinação, um dos estopins da rivalidade entre a católica Mary Stuart e a protestante Elizabeth no século 16.
“Quando entendo que as duas protagonistas pagaram caro por viver de acordo com as ideias em que acreditavam, vejo que essa situação se repete todos os dias até hoje”, justifica Virginia – que, nesta sua sexta produção teatral, reúne uma equipe de quase cinquenta profissionais.
Sob a direção de Nelson Baskerville, Mary Stuart estreou no Teatro do Sesi (Avenida Paulista) e fica em cartaz até 27 de novembro. Enquanto Virginia interpreta a personagem-título, presa em uma masmorra no dia que antecede sua decapitação, Ana Cecília Costa representa Elizabeth. Apesar de primas, as duas jamais se conheceram, trocaram apenas algumas cartas. Mas Elizabeth, pressionada por conspiradores, passou a ver na prima uma possível usurpadora do seu trono. O elenco traz ainda Genézio de Barros, Chris Couto, Joelson Medeiros, César Mello, Fernando Pavão e Iuri Saraiva, entre outros.
DESAFIO
Prato cheio para o jogo cênico de grandes atrizes, a tragédia de Schiller já colocou no mesmo palco, em diferentes épocas, Cacilda Becker e Cleyde Yáconis, Renata Sorrah e Xuxa Lopes, Isabel Teixeira e Georgette Fadel – e inspirou até um solo de Denise Stoklos. Virginia e Ana Cecília reconhecem o desafio. No entanto, apostam na chance de oferecer ao público uma reflexão sobre o papel feminino ante as manipulações masculinas. “É nítido o incômodo gerado por mulheres no poder. E, neste caso, uma delas, Elizabeth, nem sequer se casou, não tinha um marido por trás nem para fazer sombra”, ressalta Ana Cecília.
“Outro ponto claro é que o poder aprisiona, porque Mary Stuart está literalmente encarcerada, enquanto Elizabeth luta para escapar do domínio masculino e governar de acordo com a sua vontade”, completa a atriz. Virginia acrescenta que Mary Stuart não foi morta pela monarca inglesa, mas pelas leis criadas pelos homens e pelo moralismo que condenava o seu comportamento instintivo. “Mary Stuart era guiada pelo coração, foi degolada porque uma mulher não pode ceder aos seus desejos”, diz ela. “Elizabeth, por sua vez, viu a mãe ser decapitada e não quis ter o mesmo destino. Preferiu se aproximar dos homens de uma forma resignada e até mandar matar, como eles faziam.”
Nelson Baskerville abre mãos dos signos clássicos: “O que propomos é uma intermediação com a plateia” e que os espectadores entendam “como o estímulo à misoginia e às guerras religiosas causa danos, enfraquecendo quem não compactua com elas.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.