• China prende suspeitos sem julgamento em instalações secretas, diz relatório

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  • 22/06/2021 21:54
    Por Redação, O Estado de S.Paulo / Estadão

    A China está intensificando o uso de instalações secretas para prender e interrogar suspeitos sem que eles tenham sido levados a julgamento, segundo relatório apresentado à ONU na semana passada pela Safeguard Defender, grupo de defesa dos direitos humanos que atua na Ásia. A ONG colheu os relatos de 175 pessoas submetidas ao método de detenção, que relataram torturas física e psicológica enquanto estavam sob a custódia do governo chinês.

    O relatório aponta que pelo menos 37.975 pessoas foram submetidas ao Residência Vigiada em Local Designado (RSDL, na sigla em inglês) entre 2013 e 2020. O método está previsto na lei chinesa e autoriza oficiais da polícia a deter suspeitos, por até seis meses, em instalações secretas, sem qualquer tipo de autorização judicial prévia, em um dos mais abrangentes sistemas de “desaparecimento em massa do mundo”, segundo os ativistas.

    Algumas poucas garantias são previstas pela lei, como a análise da detenção por um promotor e a obrigação de informar a família da vítima sobre a detenção dentro de um prazo de 24 horas. Mas, segundo o relatório, nem essas garantias são asseguradas pela polícia, que contorna esses direitos ignorando-os ou utilizando subterfúgios – como afirmar que o suspeito cometeu crime contra a segurança nacional.

    O total de detidos pela RSDL, de acordo com os dados oficiais do governo chinês, é de 25,685 até 2020. O número, no entanto, pode chegar a até 56,963, segundo a estimativa máxima feita pela ONG. Na carta enviada à ONU, o grupo afirma que as estimativas contabilizam apenas os suspeitos que foram ou serão levados a julgamento: “Muitos – quantidade desconhecida – não serão julgados após a colocação do RSDL e esses casos nunca serão identificáveis em nenhum dado oficialmente disponível”.

    A maioria dos detidos neste método são chineses, cuja identidade não é facilmente confirmada. No entanto, alguns estrangeiros e opositores do regime chinês conhecidos no ocidente foram presos nas instalações secretas. Entre eles estão o artista Ai WeiWei, o jogador de basquete americano Jeff Harper, e os canadenses Michael Kovrig e Michael Spavor – prisões que o governo canadense classificou como uma “diplomacia de reféns”, segundo o jornal britânico The Guardian – e o escritor australiano Yang Hengjun.

    “A China não é parte do Tratado de Roma e do Tribunal Penal Internacional, mas chamamos sua atenção para o fato de que, se tortura, maus-tratos e desaparecimentos forçados são usados intencionalmente, visando uma população civil, e são generalizados ou sistemáticos, isso pode constituir um crime contra a humanidade”, diz a carta enviada à ONU pela organização.

    Para além dos possíveis crimes contra a humanidade mencionados pela ONG, os relatos de alguns dos casos mais famosos mostram indícios de que a atuação da polícia chinesa ocorre sem qualquer fiscalização, extrapolando até mesmo a controversa lei chinesa.

    No caso de Jeff Harper, por exemplo, o jogador ficou preso em uma das instalações secretas por oito meses, dois meses a mais do que o máximo permitido pela lei processual do país. Harper foi liberado em setembro do ano passado, sem nunca ter sido sequer processado. Em entrevista ao jornal americano Wall Street Journal, ele disse não saber onde estava durante o período de detenção, apesar de ocasionalmente ser autorizado a ligar para os EUA e receber visitas da namorada e de um advogado. Em outros casos, como do escritor australiano Yang Hengjun, até mesmo uma representação diplomática foi impedida de se dirigir até a instalação em que ele estava detido.

    Instalações e tortura

    Com base nos depoimentos das vítimas, o relatório da Safeguard Defenders reconstitui os detalhes da RSDL, desde a captura dos suspeitos até a rotina dentro das prisões. Os relatos também permitiram à organização esboçar a planta básica das instalações secretas.

    A cela é vigiada 24 horas por câmeras de segurança e por pelo menos dois policiais, que acompanham o detido até mesmo nas idas ao banheiro. As janelas são cobertas por cortinas e a porta abre apenas por um cartão de identificação. Segundo as descrições, apesar de sempre estarem na cela, os guardas nunca se comunicam com os detidos, a não ser no momento de dar alguma ordem.

    Por vezes, o interrogatório é conduzido na própria cela, mas em alguns casos, o suspeito é levado a uma segunda sala, onde a sessão de perguntas e respostas chega a durar horas. De acordo com o relatório, alguns suspeitos foram amarrados à cadeiras pelos braços e pernas – no método conhecido como “Tiger Chair”, em inglês.

    “Fui torturado de muitas maneiras. Algemaram minhas mãos atrás das costas, me prenderam em grades de ferro, usaram cinco ou seis bastões elétricos para me bater. Por muito tempo, eles não me deixaram comer, beber água ou ir ao banheiro. Eles me submeteram a muitos tipos de tortura. No entanto, não era nada comparado com as ameaças de que prenderiam meu filho”, relatou Zhai Yanmin, uma das vítimas ouvidas pelo grupo.

    A localização exata das instalações não é conhecida pelos detidos, apesar do relatório apontar pelo menos seis locais conhecidos para onde são transportadas as vítimas. À ONG, vítimas afirmaram ter sido presas durante a noite e conduzidas cobertas por capuzes para não identificarem seu paradeiro, o que levou o grupo a classificar a prática como “sequestros sancionados pelo Estado”.

    “Eu estava na cama com minha namorada… quando, por volta das 10 da noite, fomos surpreendidos por uma batida forte na porta… Eu abri a porta de cueca, cumprimentando as autoridades e suas câmeras montadas com uma falsa sensação de calma e surpresa”, disse Peter Dahlin, ativista sueco detido na China, e um dos autores do relatório.

    Além da denúncia, a ONG solicitou que a ONU tome providências, incluindo uma análise abrangente do sistema e se ele está de acordo com as obrigações internacionais legais e de direitos humanos; que se façam pedidos ao governo chinês relativos a esclarecimentos sobre o âmbito e funcionamento do sistema RSDL; além do envio de uma equipe ao país a fim de visitar as instalações, vítimas, familiares, procuradoria, polícia e outros envolvidos no sistema.

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