Chá revelação do deputado Nikolas Ferreira ocorreu em área de tortura na ditadura
O espaço escolhido pelo deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) para anunciar o sexo do seu filho na semana passada é uma área militar, e um local que o Exército tenta ressignificar após descobertas sobre a ditadura militar. O chá revelação, que teve a participação do jogador Neymar, ocorreu no Forte São Francisco Xavier da Barra, localizado na área do 38º Batalhão de Infantaria, em Vila Velha (ES). O local foi palco de torturas a presos políticos, como as da jornalista Míriam Leitão, e recentemente tornou-se cenário de eventos luxuosos.
Há alguns anos, os militares que raramente recebiam jornalistas no batalhão falavam que os tempos eram os outros e que era preciso “reaproximar o espaço da sociedade”. Foi o que ouvi em uma visita ao local, ainda antes de Jair Bolsonaro (PL) surgir como fenômeno e defender a tortura abertamente.
Construído nos anos de 1700, o forte tem uma vista panorâmica da Baía de Vitória, emoldurada pelos principais cartões postais do Estado: o Convento da Penha e a Terceira Ponte. Eventos esporádicos foram realizados no local desde os anos 2000, mas a reabertura ao público é recente.
A edificação foi revitalizada por uma parceria com uma empresa de siderurgia e ganhou a nova roupagem há quatro meses. Visitas turísticas podem ser agendadas, e o espaço está disponível para festividades. Não há tabela de preço e valor da locação é avaliado individualmente. O Exército foi procurado, mas não informou quanto cobrou pelo chá revelação de Nikolas.
Em um passado recente, porém, o dia a dia nas dependências do Exército era outro. Os muros do então 3º Batalhão de Caçadores guardam as memórias de um período sombrio do País. Foi lá que a jornalista Míriam Leitão, na época militante do PCdoB, sofreu três meses de torturas em 1972.
“Vi minha sombra refletida na parede branca do Forte, a sombra de um corpo mirrado, uma menina de apenas 19 anos. Vi minha sombra projetada cercada de cães e fuzis, e pensei: ‘Eu sou muito nova para morrer. Quero viver'”, relembrou a jornalista em entrevista ao “Observatório da Imprensa” em 2014.
Grávida de um mês, Míriam passou o constrangimento de ficar nua na frente de dez soldados e três agentes da repressão, além de ser colocada em uma sala escura na companhia de uma jiboia.
“Eu não conseguia ver nada, estava tudo escuro, mas sabia que a cobra estava lá. A única coisa que lembrei naquele momento de pavor é que cobra é atraída pelo movimento. Então, fiquei estática, silenciosa, mal respirando, tremendo. (…) Eu não tinha noção de dia ou noite na sala escurecida pelo plástico preto. E eu ali, sozinha, nua. Só eu e a cobra. Eu e o medo”, contou.
A mesma cobra foi usada em outras sessões de tortura que estão documentadas. Relatório final da Comissão da Verdade da Universidade Federal do Espírito Santo, de 2016, traz relatos de outros presos políticos que vivenciaram experiências semelhantes às da jornalista nas dependências da área militar.
Também grávida na época, a então estudante de Medicina Maria Magdalena Frechiani era acompanhada até o banheiro por dois militares e dois cães treinados para o ataque. Ao comando da palavra “terrorista”, eles pulavam e babavam sobre os corpos das mulheres presas.
O batalhão também funcionou como local de intercâmbio dos repressores do Espírito Santo com os de São Paulo. Agentes do Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Ordem Interna (DOI-Codi) estiveram no batalhão capixaba para fazer o reconhecimento de militantes presos em 1971.
Nikolas, que já falou que não houve golpe militar em 1964 e presenciou Bolsonaro exaltar torturadores e colocar o regime militar como defensor real da democracia, será pai de uma menina. Aurora nascerá numa democracia.