Caxias e os descaminhos de Góis Monteiro
Caxias e Góis Monteiro foram dois generais do exército brasileiro. Ambos inteligentes e figuras de relevo em nossa história. A integridade de Caxias fica patente quando afirmamos: “Fulano é Caxias.” Esta é a melhor homenagem que a população poderia lhe prestar para designar alguém cumpridor de seus deveres, da palavra dada e fiel à disciplina militar. Pedro II reconheceu seus méritos, conferindo-lhe, um a um, todos os títulos nobreza, de barão a duque com grandeza. Estas duas últimas palavras identificavam quem chegou lá por relevantes serviços prestados à pátria. A condição de duque lhe dava direito ao tratamento de alteza, normalmente reservado a príncipes. No caso dele, refletia o alto nível moral por que pautara sua vida.
O caso de Góis Monteiro foi bem diferente. Ainda que tivesse méritos e fosse honesto no trato do dinheiro público, sua vida seguiu um padrão que foi se distanciando do de Caxias. Claudio de Lacerda Paiva descreve os agentes varguistas nos seguintes termos: “quem censurava era Lourival Fontes, quem torturava era Filinto Muller, quem instituiu o fascismo foi Francisco Campos, quem deu o golpe foi Dutra e quem apoiava Hitler era Góis Monteiro”. Situação que dá bem a medida moral das pessoas que cercavam Vargas e, por contraposição, aquelas ao redor de Pedro II, como Caxias.
O episódio mais revelador da personalidade de Caxias foi o da abdicação de Dom Pedro I. Naquele dia, Caxias chegou no palácio angustiado, uma vez que seu próprio pai estava do lado dos revoltosos. E ele não concebia levantar sua espada contra o Imperador. Ao ser informado da abdicação, respirou aliviado por não ter que enfrentar o próprio pai. Nada poderia ser mais explícito do repúdio visceral de Caxias ao golpismo. Os diários do Almirante Tamandaré, registram o fato transcrito no livro “O Velho Marinheiro”, de Alcy Cheuiche. Neste mesmo livro, Caxias, numa das aulas de esgrima que dava ao futuro imperador, após um elogio deste sobre ser ele um bom político, respondeu-lhe: “Sou apenas um soldado, Alteza. E nós, soldados, somos péssimos políticos”. Repúdio ao golpismo e à política como área de atuação dos militares.
A trajetória profissional de Góis Monteiro foi sinuosa, em que se alternavam o bom senso e bem mais as opções pelo golpismo e pela política. No início do século passado, os militares parecem ter se dado conta do veredito de Caxias sobre os riscos de se meterem em política. Enviaram, então, três turmas de oficiais à Alemanha, os chamados Jovens Turcos, para aprenderem como funciona um exército profissional. Mais: de 1920 a 1940, a famosa Missão Militar Francesa (MMF) permaneceu no Brasil através de acordos para profissionalizar nossos militares e afastá-los da política. O exército deveria de comportar como o grande mudo na tradição militar francesa, inglesa e alemã.
Curiosamente, como nos relata o historiador José Murilo de Carvalho, Góis Monteiro, como brilhante aluno da MMF, antes de 1930, escrevia: “Nas lutas políticas, o exército não deve passar do grande mudo – condição essencial de sua coesão e eficiência e até mesmo de sua existência como instituição. Sua verdadeira e única política é a preparação para a guerra.” E grifava estas quatro últimas palavras, no que se revelava bom aluno dos oficiais franceses, que a rigor repetiam Caxias. Até aqui, tudo bem.
Mas, a partir de 1930, ele deu um cavalo de pau em suas convicções e partiu para uma atuação de cunho nitidamente político. Falecido em 1956, sua longa sombra se projetou com a concepção da doutrina de segurança nacional, a cartilha que desempenhou papel importante no golpe de 1964. Ele participou de golpes a ponto de defender a política do exército e combater a política no exército. Obviamente, tal proeza não funcionou, mas enquanto durou fez estragos na imagem do Exército por desvio de função e comportamento. Foi uma traição aos princípios dos quais nunca se desviou o patrono do Exército Brasileiro, o Duque de Caxias.
Quanto às simpatias de Góis Monteiro por Hitler e do próprio Vargas, e a posição lúcida e contrária do embaixador Oswaldo Aranha às potências do Eixo, Vargas resolveu tirar a situação a limpo. Enviou então a Missão Góis Monteiro a Washington para se posicionar. O embaixador Pio Corrêa, em seu livro de memórias “O Mundo em que Vivi”, nos faz um relato preciso do que ocorreu. O governo dos EUA deu grande importância à visita do general Góis Monteiro e o colocou em várias reuniões a portas fechadas com o então desconhecido general George C. Marshall, também chefe do Estado Maior do exército de seu país. Exatamente o mesmo que depois formulou o famoso Plano Marshall que reergueu a Europa nos pós-guerra.
Foi assim que teve início uma aproximação mais estreita entre o exército americano e o brasileiro. Inclusive a cessão de bases aéreas no Nordeste, como ponto de apoio ao esforço de guerra americano contra as forças militares nazistas no norte da África. Uma contribuição importante na luta contra Rommel, general alemão tido como imbatível, mas finalmente detido na batalha de El Alamein pelo general inglês Montgomery. Vargas negociou habilmente a cessão das bases em troca da instalação em Volta Redonda de uma usina siderúrgica. E fez a opção correta pelas potências democráticas, decisão que, por outro lado, muito contribuiu para pôr fim à sua ditadura em 1945.
A simples simpatia por Hitler do general Góis Monteiro revela absoluta falta de sensibilidade política. E cegueira diante do tratamento que Hitler teria dado a um país miscigenado como o Brasil. Os príncipes brasileiros que viviam na Alemanha nazista naquele triste período sempre manifestaram seu repúdio à barbárie nazista. Destronados, mas nem por isso menos alertas na defesa de nossas raízes na mesma linha de Dom Pedro II e da Princesa Isabel.
Caxias exemplifica o que o Brasil poderia ter sido se os militares tivessem sido fiéis aos valores professados por seu patrono. Góis Monteiro, qual barata tonta, foi um desvio de rota cujos equívocos em muito aprofundaram o papel político dos militares como poder moderador espúrio. Deu no que deu.