• Caso Rubens Paiva é desarquivado e assassinato de ex-deputado será investigado por comissão

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  • 03/abr 08:45
    Por Marcelo Godoy / Estadão

    Depois de ser arquivado em 1971 com o voto decisivo do então ministro da Justiça, Afredo Buzaid, a apuração sobre a prisão, tortura, morte e desaparecimento do ex-deputado federal Rubens Beyrodt Paiva foi reaberta nesta terça-feira, 2, pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Trata-se de mais do que uma decisão simbólica. É que o conselho tem atribuição para ouvir testemunhas, requisitar documentos, fazer audiências e produzir relatórios propondo sanções contra os perpetradores, como a advertência e censura pública, bem como outras medidas ao Estado brasileiro, caso constate violações aos direitos humanos.

    “E também podemos enviar o relatório a diversos órgãos para providências”, afirmou Marina Dermmam, presidente da CNDH. O representante da Defensoria Pública União na comissão, André Carneiro Leão, foi designado para fazer a abertura do procedimento apuratório das condutas de situação contrária aos direitos humanos. Além dele, outros dois conselheiros devem compor a comissão que fará o relatório do caso.

    A legislação que regulamenta o CNDH afirma que ele pode requisitar informações, documentos e provas, além de contar com o auxílio de outros órgãos, como a Polícia Federal. Os conselheiros podem fazer diligências, vistorias, inspeções, além de convidar pessoas a depor no caso, que já foi alvo de apurações na Justiça. “Tudo respeitando o contraditório”, afirmou a presidente da CNDH. Além da advertência e censura, o órgão pode pedir o afastamento da função pública de violadores dos direitos humanos. “Esse caso abre um precedente. Podemos rever outros casos arquivados”, afirmou a presidente da comissão.

    No âmbito da Justiça, o caso permanece indefinido. O Ministério Público Federal chegou a denunciar em 2014 cinco militares pelo crime, sob as acusações de sequestro, cárcere privado, homicídio qualificado, fraude processual e ocultação de cadáver. O caso foi paralisado por uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), após a denúncia ser aceita pela 1.ª instância e confirmada pela 2.ª instância da Justiça Federal. Os acusados alegam que os crimes estão abrangidos pela Lei de Anistia, de 1979. Nenhum deles foi punido. A morte de Paiva foi ainda apurada nas Comissões Nacional da Verdade (CNV) e Estadual da Verdade do Rio.

    Reunião após Lula proibir solenidades sobre os 60 anos do golpe

    A reunião ordinária do CNDH que decidiu pela reabertura do caso aconteceu dois dias depois do 31 de março, data em que completou 60 anos o golpe que depôs o presidente João Goulart. Na semana que antecedeu a data, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ordenou aos ministérios que suspendessem todas as cerimônias alusivas ao golpe, o que provocou o repúdio de entidades de defesa dos direitos humanos, ao mesmo tempo que mereceu apoio do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho.

    O caso Paiva foi um dos mais emblemáticos de violações de direitos humanos durante a ditadura militar (1964-1985). Ele era então deputado e seu nome foi incluído na primeira lista de políticos cassados em 1964 com base no Ato Institucional-1. No dia 20 de janeiro de 1971, o ex-deputado do PTB foi surpreendido em sua casa, no Rio, por uma equipe de agentes do Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA).

    Os militares haviam detido horas antes no Aeroporto do Galeão, no Rio, duas mulheres, uma das quais trazia bilhetes para Paiva. Elas vinham do Chile, onde haviam se encontrado com exilados políticos. Paiva foi levado primeiro para uma repartição da Aeronáutica e, depois, foi entregue ao Destacamento de Operações de Informações (DOI), do 1.º Exército. Ali foi torturado até a morte; depois, os militares promoveram uma farsa na qual simularam o resgate de Paiva por “subversivos”, justificando seu desaparecimento. Tudo confirmado por depoimentos de oficiais envolvidos no caso ao MPF e às Comissões da Verdade.

    Na época, uma das mulheres detidas com Paiva, a professora Cecília Viveiros de Castro, escreveu uma carta que foi lida no Congresso em junho de 1971 pelo presidente do MDB, o deputado federal Oscar Pedroso Horta. O documento tinha 26 páginas. “Depois de passar uma temporada com meu filho e minha nora em Santiago, iniciei a viagem de volta no dia 19 de janeiro de 1971”, escreveu Cecília. Horta levou o caso ao então Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), órgão antecessor do atual CNDH.

    A ação do parlamentar despertou reação da caserna – o País vivia então sob a presidência do general Emílio Garrastazu Médici, o terceiro governo da ditadura militar (1964-1985). Os militares acreditavam que a simples denúncia poderia “alimentar a campanha de difamações contra o Brasil”. O CDDPH analisou a denúncia de Horta e a votação ficou empatada em 3 a 3, sendo o voto de desempate dado pelo ministro Buzaid, determinando o arquivamento do caso.

    Foi este ato que o atual CNDH cancelou, sob a alegação de irregularidades na votação feita em 1971. De acordo com dados expostos nesta terça na sessão do CNDH pelo historiador Leonardo Fetter da Silva, um dos conselheiros da época foi constrangido a votar pelo arquivamento do caso, o que tornaria nula a decisão tomada em 1971. Foi assim que decidiram os atuais integrantes do conselho depois de ouvirem ainda Vera Paiva, filha do ex-deputado federal.

    “Foi uma sessão emocionante. Eu e meus filhos comparecemos. A memória e a verdade funciona em camadas. Acabamos de sair de um governo cujo presidente defendia a tortura”, disse. Vera se refere a Jair Bolsonaro. Ela testemunhou o dia em que o então deputado cuspiu no busto de seu pai, durante a inauguração dele no Congresso. “Eu estava lá. Finalmente tínhamos um lugar onde podíamos levar flores.” O corpo do ex-deputado nunca foi encontrado.

    O caso Paiva tornou-se emblemático ainda quando o Estado Brasileiro decidiu reparar os atingidos pelos atos do regime durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Símbolo dessa decisão foi o abraço de Eunice Paiva, mãe de Vera e viúva do ex-deputado, no então ministro-chefe da Casa Militar, general Alberto Cardoso.

    Foi quando foi instituída a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, que apura as circunstâncias em que as violações ocorreram e determina providências, como a concessão de atestado de óbito entregue aos familiares dos desaparecidos. Essa comissão, da qual Vera Paiva fazia parte, foi encerrada no apagar das luzes do governo Bolsonaro. E o governo Lula vem se recusando a reabri-la. “Há um equívoco do governo ao não reabrir a comissão”, disse.

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