• Carta a Mário Quintana

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  • 19/maio 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    Caríssimo Poeta, sei que, nesse lugar em que você se encontra, o eterno é parte do cotidiano. Aqui, no lado material da existência, o efêmero ganha velocidade pelas ações humanas. Estamos pagando um alto preço pelos crimes que cometemos contra a Natureza, pois vidas inocentes são ceifadas de maneira trágica. Os fenômenos naturais não aprenderam a perdoar. A relação entre causa e consequência fica explícita a cada desastre. Ainda não aprendemos as lições impostas pelas tragédias. As mudanças climáticas têm castigado as populações que vivem à margem do poder econômico. O “perder tudo” virou rotina. A vida passou a ser o único bem por ser intransferível. Preservá-la merece todo sacrifício.

    Caríssimo Poeta, peço-lhe desculpa por estar assim neste lamento imerso em prosa fragilizada por uma dor, que é uma velha conhecida. Sou piauiense, de Teresina. Como retirante, aprendi a carregar silêncio matutado, ruminado nos passos do tempo…

    Somente pendurado no humano, é possível destelhar pensamentos diante do caos. As utopias emergem quando aspiramos a uma “terra sem males”. Prefiro os sonhos frustrados à “Insônia Eterna”. É possível viajar adormecido. Contudo, é o pesadelo da realidade que nos faz acordar: precisamos mudar a nossa relação com a Natureza. Os estragos provocados pelos desastres naturais revelam o impacto das nossas ações.

    Caríssimo Poeta, abro aqui um parêntese, no propósito desta carta, para externar a minha admiração pela sua Poesia. Não sofro de rimatite. Gosto dos poemas concretos. Não conto sílabas. Sinto as palavras pela alma. É a essência que navega para além da forma e das fôrmas. Leio os seus poemas para rir por dentro, sem expor os dentes, para pensar o cotidiano e colher lições sem as áureas dos fardões. O simples traz o nada sem máscara, sem maquiagem, sem adereços, sem alegorias. Os seus livros me acompanham na tristeza e na alegria, na saúde e na doença. Por isso a minha gratidão é imensurável…

    Um dia, fui à sua Porto Alegre, visitei o seu porto, alegre, com uma alegriazinha, uma alegrete. Vi o pôr do sol no Guaíba. Lindo! Mas bateu uma saudade imensa do Parnaíba nos fins de tarde. O Sol se despedindo do dia atrás das folhas de carnaúba é poesia em estado de graça.

    Caríssimo Poeta, sei que, de onde você se encontra, é possível ver o pesadelo de um povo que está, a céu aberto, noite e dia, imerso em águas estancadas que não deixam as ruas. Lembrei-me até da sua “elegia”:

    “Caminhozinho por onde eu ia andando/ e de repente te sumiste/ – o que seria que te aconteceu?/ Eu sei… o tempo… as ervas más… a vida…/ Não, não foi a morte que acabou contigo:/ Foi a vida./ Ah nunca a vida fez uma história mais triste/ que a de um caminho que se perdeu…”

    Caríssimo Poeta, caminhos sumiram inundados. O seu Rio Grande do Sul sofre as consequências da insanidade humana que se alimenta pela ganância que move o inconsequente “ter”.

    Quem vive aqui em Petrópolis conhece bem essa dor provocada pela devastação das águas de chuvas torrenciais. Já sentimos na pele a perda de entes queridos em deslizamentos de terra, em alagamentos, nas correntes de rios que pulam das margens em velocidade destruidora. Quem já passou por esse desespero impotencializador diante da força das águas em uma correnteza descomunal identifica, com facilidade, o sofrimento de quem se encontra em situação de calamidade.

    Gestores públicos, naufragados em corrupção, acenam com medidas paliativas. E as cenas se repetem ano a ano. O que muda, às vezes, são as regiões. Empatia, altruísmo movem a consciência de um povo que solidariamente se mobiliza para ajudar sem medir esforços.  As soluções efetivas exigem ações que desagradam a pequena parcela da sociedade que lucra com a exploração da natureza sem se preocupar com o equilíbrio do ecossistema. As políticas voltadas para as necessidades do povo ficam na esfera do assistencialismo.

    As tragédias expõem não somente a incompetência, mas também a omissão, o descaso, a insensibilidade social, a conduta desumana de quem gerencia o poder em função das oligarquias.

    Humanizar-se é um processo árduo. As ações que combatem o egoísmo exigem renúncias, imprescindíveis na abnegação que difere de sacrifício. O amor, que se materializa em doação, sabe que a partilha une fraternalmente. O desprendimento possibilita a ajuda mútua. A interação social é inevitável…

    Caríssimo Poeta, agradeço, mais uma vez, a sua atenção. Saber ouvir, no silêncio, é arte. Não posso esconder esta tristeza profunda por ver tantas vidas ceifadas em tragédia que poderiam ser evitadas.

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