• Caminho longo e tortuoso à frente de quem quer sair das ruas e voltar à família

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  • 13/08/2019 11:21

    Desafio de alimentar a alma

    Igor Fortuna conheceu a Pastoral de Rua em 2013. Já participava do grupo de jovens na Igreja Católica, e foi convidado para participar de uma das abordagens que o grupo faz, às sextas-feiras, à noite nas ruas do Centro. No primeiro dia de visita, Igor contou que se sentiu apreensivo e preferiu deixar que os outros voluntários, mais experientes, conversassem com o grupo que dormia na rua. Mas em um dos momentos, quando já se despedia para ir embora, um dos moradores se aproximou, apertou sua mão, agradeceu a visita e disse o quanto tinha sido importante para ele receber a atenção e o olhar do grupo através daquela ação. “Depois disso eu nunca mais deixei a Pastoral”, contou Igor.

    Leia também: O drama invisível e os altos riscos que vivem os moradores de rua 

    A carência social é a maior necessidade de quem mora na rua. Pelos olhos da Pastoral de Rua, Igor, coordenador do grupo há 4 anos, disse que o que mais sensibiliza os voluntários é ver no olhar das pessoas em situação de rua a falta do contato humano.

    Morar na rua não parece ser uma escolha quando para muitos é a única opção.

    Ainda que sejam disponibilizados alguns equipamentos públicos para o acolhimento dessa população, a visão negativa do Núcleo de Integração Social (Nis) e Centro Especializado para População de Rua (Centro POP) parte também dos usuários. “Muitos não vão para o abrigo porque tem um olhar negativo do lugar, não só por esse abrigo agora, mas por experiências anteriores. Relatam a falta de estrutura, a dificuldade para cumprir as regras e os desentendimentos entre eles. Tem resistência também no Centro Pop, pelos mesmos motivos”, explica o coordenador. 

    A Pastoral de Rua é um movimento da Igreja Católica que acolhe e oferece assistência à população de rua. Na cidade, as visitas são semanais. O grupo percorre as ruas do Centro Histórico levando lanches, agasalhos e cobertores para quem estiver dormindo na rua. São cerca de trinta voluntários que se revezam nas visitas. Nas ruas, eles conversam, cantam músicas e fazem uma oração com os “irmãos” de rua, como são chamados pelo grupo. “Nem todos os moradores são católicos, mas a maioria aceita a oração. Alguns até esperam por aquele momento”. 

    Há cada três meses, a Pastoral promove um almoço em um domingo. Uma ceia de natal no dia 25 de dezembro e o Retiro de Carnaval. Nos dias de folia, que para alguns são cinco dias longe do álcool e das drogas, eles têm a chance de viver em fraternidade e resgatar a pessoa que existia antes das ruas. “No retiro de carnaval é trabalhada a reinserção social e também a autoestima, tentamos resgatar a cidadania dessas pessoas”. Aqueles que demonstram o desejo de sair da rua, a Pastoral oferece o acolhimento na Chácara Nossa Senhora Aparecida, que fica no Meio da Serra. Lá eles são assistidos por seis meses, e são feitos trabalhos de reinserção social e familiar.

    A abordagem ou acolhimento à população de rua é um trabalho desafiador. Na sociedade civil alguns grupos organizados tentam levar mais do que alimentos e agasalhos, mas atenção e afeto. Nem sempre há sucesso nas abordagens, principalmente no que diz respeito ao convencimento a aceitar o acolhimento nos equipamentos públicos de assistência social. E por isso, o trabalho mitigador desses grupos é tão importante. 

    “Vamos para a rua para ajudar e quem são ajudados somos nós”

    Ângela Lima começou o trabalho voluntário com a população de rua há 8 anos. Mas, há quatro anos, com o apoio de amigos e familiares, iniciou o projeto Abraços que curam. O projeto não tem ligação com nenhuma entidade ou movimento religioso, é um grupo de voluntários que vai às ruas uma vez por semana para visitar as pessoas em situação de rua. São cerca de setenta pessoas, entre os que vão às visitas e os que ajudam com doação de alimentos, dinheiro para comprar medicamentos e material de higiene. 

    Entre tantas visitas, nas ruas, os voluntários ouvem as mais diversas histórias. Uma problemática enfrentada em muitos casos, é o “se acostumar” a viver em situação de rua. “Os vínculos interrompidos não são apenas com familiares, mas com eles próprios. Perdem a identidade, esquecem de quem foram. São pessoas com uma história como todos nós, que tiveram infância, muitos estudaram, tem formação e até profissão” e, agora, vivem na invisibilidade. 

    A resposta resistente às abordagens é consequência da falta de sensibilidade da sociedade em reconhecê-los como indivíduos. “Como é importante reconhecê-los pelo nome. Além de se abrirem, eles se veem como indivíduos, como pessoas novamente. Quando encontro com algum na rua, sempre procuramos os cumprimentar pelo nome”. Ângela explica que até os apelidos que são conhecidos nas ruas, costumam ser evitados pelo grupo. Ela conta que um dia desses encontrou com um dos moradores que ela conhece das abordagens dentro do banco, fazendo o saque de um benefício que tinha direito. “Eu o cumprimentei pelo nome e as pessoas ficaram olhando sem entender. Como se as pessoas em situação de rua não tivessem nome, ou não fizessem coisas deste tipo, como ir ao banco”.

    O grupo se reúne sempre nas noites de domingo, e encontra uma média de 25 pessoas por semana. São alimentos, roupas e cobertores aos que precisam. Os medicamentos só são entregues se eles apresentarem a receita médica. “A sociedade tem uma visão cristalizada sobre as pessoas em situação de rua. Essas pessoas têm uma imagem naturalizada de que são pessoas marginalizadas, o que precisa hoje é uma desconstrução de quem são essas pessoas”, completa Ângela.

    A cidade hoje, tem quase dez grupos de voluntários que promovem ações pela população de rua. São feitas ações pontuais, ou abordagens semanais como os promovidos pelos dois grupos. Sem políticas públicas efetivas que dê oportunidades e garanta os direitos da população de rua, o olhar sensibilizado de pequenos grupos da sociedade civil é o que, em muitos casos, garante o mínimo de assistência e até sobrevivência dessas pessoas. 

    A difícil missão de reaprender a viver em família

    O portão principal fica aberto. No caminho que se faz até a casa é cercado por um jardim bem cuidado e pedras pintadas. No quintal tem um lago, onde são criados alguns peixes. A casa, com paredes brancas e rosas, tem também pintadas imagens de santos, do lado de dentro e fora. Tudo cuidado com muito zelo pelos seus 15 moradores. A Chácara Nossa Senhora Aparecida é um dos frutos do trabalho do Padre José Carlos Medeiros Nunes, o Pe. Quinha, e acolhe pessoas em situação de rua e de extrema vulnerabilidade social. 

    Como qualquer outro domicílio, há regras. Não entram bebida alcoólica, drogas e nem mesmo tabaco. A proposta se dá em seis meses de acolhimento, que através de um trabalho de assistência, eles têm a chance de dar o primeiro passo para abandonar os vícios, resgatar o vínculo familiar e a reinserção social. 

    “Na casa também há regras e normas de convivência. E é uma dificuldade, porque na rua eles não têm isso. As únicas que eles têm são as regras para não sofrer violência. Ai vem para cá, tem que aprender que não pode cuspir em qualquer lugar, tem que usar o banheiro. É um reaprendizado, porque vivendo na rua eles desaprendem tudo isso”, conta o coordenador da Chácara, o diácono João Padilha. 

    Como em um lar, os acolhidos vivem em família. Deixam de ser números e são vistos como pessoas, “irmãos de rua”. O diferencial da espiritualidade ajuda a trabalhar a corresponsabilidade no cuidado com o outro. A reinserção familiar nem sempre é possível. Muitos nem se quer têm familiares vivos. Estes, ainda que tenham condições de serem reinseridos socialmente na comunidade, não têm como se manter financeiramente e acabam morando na Chácara por bem mais do que seis meses. 

    Como é o caso do Sidney, que tem 55 anos. Por quase dez anos trabalhou vendendo pães pelas ruas de Areal. Por causa do álcool acabou rompendo com o pai e um irmão e foi morar na rua. Há uns 10 anos, Sidney subia a pé uma ladeira em Areal e acabou sendo atropelado por um carro. Contou que estava alcoolizado e não viu o veículo vindo em sua direção. O acidente deixou sequelas na sua perna direita, o que faz com que tenha muitas dificuldades para caminhar. 

    Por Areal se tratar de uma cidade relativamente pequena, todos se conhecem. Não demorou muito tempo nas ruas e Sidney foi convidado para morar na Chácara. Há pouco mais de dois anos vivendo no local, conseguiu superar o alcoolismo e sonha em voltar a viver com o pai. Ainda que as sequelas do acidente sejam graves, ele não conseguiu o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que lhe garantiria uma renda de um salário-mínimo para seu sustento fora da Chácara. 

    Os vínculos familiares que tinha foram se rompendo pouco a pouco. Sua mãe é falecida, não tem mais contato com os outros cinco irmãos, e fala por telefone quase semanalmente só com uma única filha, dos dez filhos que teve nos três casamentos. Mas sem ter o benefício social, e sem ter condições de trabalhar, Sidney não tem para onde ir. Quando pergunto se ele gostaria de voltar a morar em Areal ele desabafa. 

    “Vontade eu tenho, mas tenho que entrar em contato com meu pai, né? Saber como que eu vou. Conversar com ele, saber se eu posso ir. Eu pretendo voltar, tem um pedacinho de terreno que minha mãe me deu lá, quero conseguir comprar o material e fazer uns dois cômodos. E levar o resto da vida, já passei dos cinquenta, tem que pensar na outra metade agora”, respondeu.

    Higienização social e abordagem truculenta

    Se a abordagem humanizada de grupos da sociedade civil conseguem acolher as pessoas em situação de rua, na outra ponta chovem denúncias e reclamações de abordagens truculentas e despreparo dos agentes públicos. As ações que são descritas muitas vezes como um incentivo a política de higienização social, demonstra claramente a forma como a sociedade e o poder público lidam com a ocupação da população de rua em praças e espaços de grande circulação na cidade. 

    Em 2017, no primeiro dia do ano, uma equipe do governo municipal realizou uma ação de retirada das pessoas em situação de rua do Centro Histórico. Três secretarias – a então, Secretaria de Assistência Social, Trabalho e Cidadania (Setrac), Guarda Civil e a Companhia Municipal de Desenvolvimento de Petrópolis (Comdep), fizeram uma limpeza em algumas ruas do Centro, como a calçada da Rua Barão de Tefé e a Rua Souza Franco. Os pertences dessas pessoas foram levados, e elas foram aconselhadas a irem para o abrigo, no Alto da Serra, o que não aconteceu. O episódio é lembrado com horror, pelo Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) e a Defensoria Pública no município. 

    Todas as pessoas têm o direito de permanecer na rua, e manter consigo seus pertences, desde que não sejam ilícitos, como explica a defensora pública Marília Pimenta. A abordagem dos setores de ordem pública são motivo de preocupação para a Defensoria Pública. “Não é uma abordagem social, mas a pessoa que está ali tem que ser treinada para isso. O que falta na Guarda é treinamento. Porque dependendo de como é feita a abordagem gera mais violência. Tanto a abordagem de um guarda civil, como de qualquer tipo de autoridade com relação a população de rua, tem que ser uma abordagem treinada, preparada, especializada nisso. Eles tem que saber abordar porque são pessoas muito feridas pela vida”, disse a defensora. 

    Em dezembro do ano passado, em meio a inúmeras reclamações de usuários do Terminal Rodoviário Imperatriz Leopoldina, no Centro, sobre o grande número de pessoas em situação de rua que se abrigam no local, a reportagem flagrou o momento em que um Guarda Civil aciona um spray em direção as pessoas que dormiam no chão do Terminal. Sem qualquer preocupação com a gravação, ele aciona o spray, mas não consegue fazer com que as pessoas se levantem, então vai embora.  

    Imagem da reportagem veiculada na TVCidade. (Foto: Marlus Alessio/TVCidade)

    Se tornou comum ver pessoas dormindo nas vielas do Terminal Centro. E o número de pessoas em situação de rua tem aumentado visivelmente na cidade. De acordo com a Prefeitura, a cidade possui cerca de 200 pessoas em situação de rua. 75% concentrada no primeiro distrito; 15% no terceiro distrito; 5% no segundo distrito; 3% no quinto e 2% no quarto. Para a defensora o aumento da miséria tem influenciado no aumento de pessoas vivendo em situação de rua. 

    “São diferentes situações em relação a pessoa moradora de rua e a pessoa em situação de rua. A população em situação de rua, ela é muito maior do que a população de morador de rua. O morador de rua é aquela pessoa que realmente não tem casa. E a pessoa que é em situação de rua é aquela pessoa que está desestruturada familiarmente, mentalmente que as vezes é provisório e as vezes até definitivo”, define. 

    A Defensoria Pública mantêm parcerias com alguns equipamentos no município, como o Centro Pop, Consultório de Rua e o CDDH. Assim, se dedica a garantir que alguns direitos sejam respeitados, como a emissão de documentos de forma gratuita, o acesso à saúde, e a fiscalização dos equipamentos de assistência do município. 

    “Nestes anos trabalhando com a população de rua na defensoria, eu aprendi a ver com olhar diferente essas pessoas que estão na rua. Aprendi que dependendo da característica de cada cidade a gente vai ter uma abordagem diferente. Petrópolis que é uma cidade burguesa, e nós vimos essas pessoas com olhar ruim. Nós não vemos essas pessoas como pessoas a margem da sociedade e que precisam do apoio do poder público. A gente vê essas pessoas como criminosas e como um incomodo social que tem que tirar da frente. E para tirar da frente, começa a exigir do poder público essas medidas de higienização que praticam e que são ilegais”.

    Para a defensora Marília, um trabalho bem-feito pode ajudar as pessoas a saírem da situação de rua. “Mas tudo tem que ser feito com paciência e treinamento, por pessoas especializadas nisso”, completa. 

     

     

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