• Caio Prado Júnior e sua narrativa histórica desinformada

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  • 31/ago 08:00
    Por Gastão Reis

    Caio Prado Júnior (1907-1990) é autor de vários livros, destacando-se entre eles “História Econômica do Brasil”, lido por mais de uma geração de brasileiro(a)s, e ainda “Formação do Brasil Contemporâneo”. São obras que estão sob fogo cruzado face às novas pesquisas sobre os períodos colonial e imperial de nossa História. Ele adotava o enfoque marxista na abordagem da história. Faleceu um ano depois da derrocada da antiga União Soviética em 1989 e antes da reviravolta ocorrida na economia chinesa em direção a práticas de mercado, embora sem abertura na esfera política em que o Partido Comunista Chinês continua a dar as cartas.

    A primeira observação se refere à certa pobreza em sua obra em matéria de história comparativa. Nela, nossas falhas são ressaltadas e as virtudes esquecidas, sem se preocupar muito com o que acontecia com outros países na mesma época. O enfoque marxista, na base da luta de classes como motor da História, também não foi de grande ajuda, dadas as fragilidades de Marx em economia como a teoria do valor trabalho, que não se sustenta, como única fonte de valor de bens e serviços.

    Mas, sem dúvida, o calcanhar de Aquiles de sua obra está na ausência de pesquisas mais aprofundadas sobre o que realmente aconteceu nas fases colonial e imperial de nossa História. Jorge Caldeira, na “História da Riqueza no Brasil”, nos dá uma resposta, baseada em pesquisas sólidas, de que funcionou bastante bem. Ele nos mostra que a visão do latifúndio na colônia como o motor de nossa base exportadora para mercados centrais de produtos tropicais ignora o grande mercado interno que consumia 85% do que era produzido, indo apenas 15% para exportação.

    Também é falha sua visão do poder abrangente do senhor de engenho de mandar e desmandar nos pequenos produtores em seu entorno. Nem mesmo a categoria analítica do latifúndio, utilizado por Caio Prado Jr., é original, pois podemos detectá-la em Oliveira Vianna, monarquista, em seu livro “Evolução do Povo Brasileiro”. Caldeira recorre ao estudo que melhor cobre o período colonial intermediário (1680-1725), de Rae Jean Dell Flory, em que ela foca na vitalidade das relações entre plantadores de açúcar, de tabaco, comerciantes e artesãos da cidade de Salvador e Recôncavo.

    O quadro que emerge não confirma as análises sem base quantitativa e de pesquisas sobre arquivos de igrejas e cartórios, onde havia, por exemplo, informações sobre inventários. Nem mesmo a carência de moeda corrente teria afetado negativamente o desenvolvimento do período colonial por sua escassez. Este problema se transformou em abundância com o início do ciclo do ouro em que o metal virou moeda de troca. A economia interna, diferentemente da metropolitana, continuou a crescer ao longo do Império, mesmo após o esgotamento do ciclo do ouro.

    O período colonial foi bem sucedido ao se levar em conta que a economia brasileira, no fim dos tempos coloniais, já era mais robusta que à da metrópole portuguesa, havendo anos em que o Brasil tinha superavit no comércio com a metrópole. Foi nessa época que nossa renda per capita mais se aproximou da americana, tendo atingido uma renda per capita que girava em torno de 60% da americana. Hoje, fica em torno de ¼ pelo critério do PPC – Paridade do Poder de Compra.      

    Para se ter noção das falhas graves de Caio Prado Jr., vale a pena selecionar alguns trechos de seu livro “Formação do Brasil Contemporâneo”, onde é possível encontrar sua visão distorcida do que foi a sociedade colonial.      

    Na página 356 do livro mencionado, Caio Prado Jr. faz o seguinte resumo:

    “Numa palavra, e para sintetizar o panorama da sociedade colonial: incoerência e instabilidade no povoamento; pobreza e miséria na economia; dissolução nos costumes; inércia e corrupção nos dirigentes leigos e eclesiásticos. Neste verdadeiro descalabro, ruína em que chafurdava a colônia e sua variegada população, que encontramos da vitalidade, capacidade renovadora? (…) O mal estar (inclusive econômico) generalizado que de alto a baixo perpassa a sociedade colonial e lhe tira estabilidade e equilíbrio.”

    Na página 362, ele continua falando sobre a política lusitana em relação ao Brasil: “Ela é antes de tudo um “negócio” do rei, e todos os assuntos que se referem à administração pública são vistos deste ângulo particular. Assim os problemas políticos e administrativos que suscita a colônia americana são sempre abordados de um ponto de vista estritamente financeiro.” Não mesmo!

    Infelizmente, por falta de pesquisas mais sólidas e acuradas, o autor esqueceu de combinar com a realidade do que estava efetivamente ocorrendo na terra brasilis. Se a renda real per capita se aproximava da americana por volta de 1800, é evidente que a dita colônia brasileira vinha se desenvolvendo bastante bem a ponto de já ser maior do que à da metrópole lusitana na época.

    Quanto ao enfoque puramente financeiro, não condiz, por exemplo, com preocupação de criar várias santas casas da misericórdia desde a primeira em Santos, fundada por Brás Cubas em 1543(!). Ele era nobre português, e vários outros portugueses se cotizaram para mantê-la, dando atendimento gratuito à saúde de quem precisasse, fosse escravo ou homem livre. E assim se manteve ao longo de todo período do Império. A Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, ainda hoje, impressiona por suas dimensões e beleza arquitetônica. E a de São Paulo, com seis hospitais, não fica atrás. Ela está na lista dos melhores hospitais do mundo.

    Caio Prado Jr. não tem mesmo nem a desculpa de desconhecer a obra de Roberto C. Simonsen, “História Econômica do Brasil”, cuja primeira edição data de 1937, ano em que ainda estava vivo. Na sexta edição, nas páginas 392 e 393, é dito que Dom João VI quando veio para cá trouxe 200 milhões de cruzados, aproximadamente metade do meio circulante português, e quando voltou levou apenas 50 milhões. E deixou aqui obra civilizatória portentosa.

    Estranho, não é mesmo, caro(o) leitor(a), um autor tão conhecido desconhecer tais fatos bem documentados?

    **Sobre o autor: Gastão Reis é economista, palestrante e escritor

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