• Brasil de hoje previsto mais de 100 anos atrás

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  • 05/out 08:00
    Por Gastão Reis

    A situação que o País vive hoje foi prevista, com precisão cirúrgica, mais de 100 anos atrás. Não que o descolamento entre o andar de cima e a população em geral estivesse acontecendo, pela primeira vez, na república. Mas, hoje, pelo jeito, ela se agravou além da conta. Um pequeno passeio pela História, percorrendo os vaticínios de figuras como Nabuco, André Rebouças, Ruy Barbosa, Monteiro Lobato e Machado de Assis, o quadro já se apresentava dramático nos primeiros anos desta malfadada república.

    Tomemos Joaquim Nabuco em carta ao Alte. Jaceguay, em 1895, em que ele afirmava: “A razão aconselhava que a dinastia e a força armada se entendessem, se unissem, reciprocamente se apoiassem, animadas como eram do mesmo espírito de abnegação e patriotismo. Em vez disso, infelizmente o exército preferiu destruir a sua aliada natural e começar sua própria evolução política, perigosa sempre para instituições militares”. Disse mais: “O Brasil quanto mais civilizado tenderá para a monarquia, quanto mais bárbaro, mais se desinteressará dela”. No fígado, com estilete.

    A luta contra os desmandos das oligarquias, sempre denunciadas pelo próprio exército, se deu, desde 1889, sem que este pudesse se valer de sua aliada natural, a monarquia. O exemplo mais gritante foi o caso das leis abolicionistas em que o peso da instituição monárquica fez com que estas fossem passadas por gabinetes conservadores. A despeito do peso das oligarquias na época, houve esta força que se contrapôs, aliada a líderes como o Barão do Rio Branco, de perfil conservador, mas com visão de longo prazo, que levou o País a agir na direção correta. E lutasse contra a desigualdade como nunca depois.

    O caso de André Rebouças, que acompanhou a Família Imperial no exílio, é emblemático. Suas palavras sobre o futuro dos descendentes de africanos com a chegada de república foram proféticas. Seria sombrio para a raça negra sob o novo regime.  E acertou na mosca. Francisco Glycerio, fundador e depois presidente do Partido Republicano Paulista, não poderia ter sido mais claro: “Nosso objetivo é fundar a república e não libertar os escravos”. Diziam mais, e com certo cinismos, os ditos republicanos de então: “Isso era assunto dos partidos monárquicos”. Nestes, avanço; naqueles, atraso.    

    Ruy Barbosa é um caso exemplar de desilusão precoce com o novo regime. Logo após perder o cargo de ministro da Fazenda com a crise do Encilhamento, episódio desastroso em que foram criadas instituições financeiras sem a devida regulamentação, resultando em falências múltiplas, ele teria visitado D. Pedro II em Paris. E fez o mea culpa: “Perdão, Majestade, eu não sabia que a repúbli-ca era isso.”

    Mais tarde, em 1915(!), colocou em letra de forma o seguinte: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”. Falta nesta citação tão conhecida a última frase, que é sempre omitida, qual seja: “Esta foi a obra da república nos últimos anos”. Essa triste obra de desconstrução da nacionalidade continua a pleno vapor até hoje.  

    No caso de Monteiro Lobato, reproduzo o que escrevi no meu livro “História da Autoestima Nacional”, em que menciono o artigo dele “A Luz do Baile”, metáfora para a figura de D. Pedro II: “A argúcia psicológica de Lobato se manifesta ao explicar o poder que emanava da obediência às instituições garantida pela presença do Imperador. O pilantra se continha e o homem correto não se desviava por verem na figura do monarca uma sentinela sempre alerta, capaz de tomar as devidas providências em defesa do bem comum”. Perdida a sentinela, o Brasil de hoje causa vergonha e mal-estar à população.

    Dentre essas grandes figuras de nossa História, deixei para o final o que Machado de Assis afirmou que viria com a chegada da república.  Certa feita, ele confessou que pedia aos deuses que “afastassem do Brasil o sistema republicano, porque esse dia seria o do nascimento da mais insolente aristocracia que o sol jamais iluminou”.  Contemplando o Brasil de hoje, a bola de cristal de Machado lhe transmitiu com precisão a tragicomédia em que estamos mergulhados. Sua única imprecisão foi usar a palavra aristocracia. O termo correto seria caquistocracia; do grego, caquistos, pior, e cracia, governo. O significado literal da palavra é governo por parte das piores pessoas.

    Pelo jeito, os deuses não fizeram seu dever de casa para nos livrar do que viria. Não há como fugir da óbvia explicação da falta de atenção à educação pública de qualidade, a arma mais poderosa para combater a desigualdade.

    No início da década de 1960, muito jovem, me recordo de ter estudado na Escola 7-11 Chile, em Olaria, no Rio de Janeiro. Era o chamado ensino primário, hoje fundamental. Havia três turnos diários de apenas três horas e meia cada um. Não obstante o fato de as professoras ganharem bem e terem boa formação profissional, a qualidade no ensino público no antigo Distrito Federal se perdeu a partir da década de 1960.

    Ou seja, o tempo de permanência dos alunos na escola era a metade do que ocorria, por exemplo, nos EUA. No final da década de 1970, em Filadélfia, onde eu morava, os alunos entravam às 9 horas da manhã e saiam às três e meia da tarde. No total, seis horas e meia dentro da escola, que dispunha de biblioteca, farto material didático e todo o aparato para a prática de esportes. Pesquisas sérias revelam que mais tempo dentro da escola bem equipada eleva o nível de aprendizado dos alunos.    

    Voltemos, por fim, à questão inicial sobre a presciência revelada por essas grandes figuras em tela sobre nosso futuro sombrio sob o regime republicano. Além da perda do poder moderador, instrumento adequado para controlar os desmandos do andar de cima, não levamos a sério a educação pública de qualidade. Foi uma combinação explosiva de uma classe dirigente focada no próprio umbigo com educação pública de má qualidade.

    Em suma, a república foi a receita certa para dar errado.

    **Nota: Digite no Google “Dois Minutos com Gastão Reis” para me conhecer melhor.

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