• Bioteatro mostra histórias criadas da vivência dos atores

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  • 16/10/2021 08:30
    Por Gilberto Amendola / Estadão

    Uma atriz negra, católica, que teve uma filha branca, narra a morte desta filha em um acidente de carro – ocorrido um mês antes do início da pandemia da covid-19, em 2020. Essa tragédia pessoal se transforma em uma cena de teatro que, após um sorteio entre atores, é recriada e interpretada por uma atriz branca, judia, que tem uma filha negra, e que vive os questionamentos da maternidade.

    Esse foi um dos encontros promovidos pelo método do Bioteatro, uma criação da atriz, diretora e psicóloga Nany di Lima. A experiência resultou em duas experiências audiovisuais, com os filmes Dois Mil Infinito e Vinte e Eu Consigo Respirar Debaixo D’Água… “O Bioteatro é o encontro entre a biografia e o teatro, estimulado por um campo de empatia. É uma dramaturgia criada a partir das histórias de cada ator e atriz”, disse Nany.

    O primeiro filme (Dois Mil Infinito e Vinte) é uma espécie de documentário que mostra os bastidores do processo que levou os atores a abraçarem o Bioteatro. “Nós fizemos uma linha do tempo, que compreendia o ano de 2020. A proposta era que os atores desenvolvessem uma cena a partir de algo marcante que aconteceu na vida deles naquele ano – não necessariamente algo relacionado à pandemia da covid”, explicou Nany.

    Dois Mil Infinito e Vinte captura o momento em que os atores descobrem que não irão realizar as cenas que viveram e escreveram, mas que elas seriam sorteadas e interpretadas por outras pessoas. Esse processo foi batizado de “autoficção reversa”. “No início, teve essa reação de ‘como assim não sou eu quem vou fazer’, depois teve quem quisesse escolher o ator que iria interpretá-lo. Mas todas as trocas de papéis foram feitas por sorteio”, lembrou Nany.

    Além do encontro relatado no primeiro parágrafo desta matéria, o sorteio produziu outros espelhamentos interessantes. Entre eles, o caso do ator que, aos 57 anos, nunca teve um relacionamento sério por mais do que seis meses, mas foi sorteado para interpretar um ator que é casado há mais de 20 anos e estava buscando um terceiro parceiro para estimular seu relacionamento.

    Outro caso interessante é o da atriz que, revoltada com a falta de apoio para a profissão em tempos de covid, pensa em largar tudo. Para sobreviver, começa a dar aulas de balé pela internet. Durante uma delas, ela derruba o computador – que cai sobre o pé, causando uma fratura. No sorteio, ela pega a cena de um ator que está com a perna imobilizada e sem trabalho.

    “É até difícil acreditar que os encontros se deram por meio de um sorteio. Mas esse tipo de coisa sempre acontece. Ele pode ser entendido de diversos pontos de vista, como por meio da sincronicidade junguiana (definição do psiquiatra Carl Gustav Jung para um princípio que deveria explicar a relação significativa não casual de acontecimentos) ou da teoria do campo morfológico (estudo do biólogo Rupert Sheldrake sobre como organismos adotam as suas formas e comportamentos característicos)”, explica a diretora.

    No segundo filme (Eu Consigo Respirar Debaixo D’Água…) há o resultado final e artístico dessa experiência de Bioteatro e autoficção reversa. As cenas prontas foram realizadas por cada ator em suas próprias casas ou outros ambientes (todo o processo foi feito durante a pandemia, portanto com todos os envolvidos em distanciamento e utilizando ferramentas como o Zoom). Os quadros são costurados com a intervenção da própria diretora.

    O ator Leonardo Boaventura Diniz, de 50 anos, enxergou no Bioteatro a possibilidade de ampliar os horizontes do próprio trabalho. “Não basta só entrar no teatro, criar um espetáculo e apresentar. De repente, sinto, que estamos criando um novo gênero, uma nova relação com o nosso próprio trabalho e a plateia”, observa.

    Do ponto de vista pessoal, Boaventura contou que foi sorteado com uma cena que falava do luto de um ator pela perda do pai. “Eu mesmo perdi a minha mãe há dois anos. Por meio da cena que estava interpretando, entendi que não tinha vivido o luto pela minha perda. Coincidentemente, nesse período, me entregaram uma cópia de um livro de receitas da minha mãe. Não acreditei naquilo. Fui para cozinha, peguei o livro, e preparei o salpicão que só ela sabia fazer. Quando comi, comecei a chorar e foi como se ela estivesse comigo de novo. Vivi o meu luto”, contou.

    Já a atriz Dinah Feldman, de 43 anos, revelou que foi apanhada de surpresa pelo próprio método. “Quando escolhi o que ia contar com a minha cena, eu já sabia como ia fazer, tinha a energia da cena, o cenário… Quando a Nany contou que minha cena iria ser feita por outra pessoa, eu tomei um susto”, recordou.

    “No início fiquei brava, mas fui sendo puxada para dentro do processo. Na minha cena, interpreto a atriz negra, extremamente católica, que perdeu a filha branca em um acidente de carro. Eu, que sou judia, tenho uma filha negra, e já questionei muito a maternidade, me vi nessa situação”, explicou. A fricção dessas duas histórias e personalidades resultou em uma cena de impacto na qual com um terço a atriz reza em hebraico.

    A próxima exibição dos dois filmes está programada para este sábado, 16, às 19h30. As sessões são gratuitas e o acesso é pelo YouTube da Oficina Cultural Oswald de Andrade, pelo link https://linktr.ee/bioteatro.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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