• Biografia decifra Hamilton, político vital para os EUA e inspirador de musical

  • Continua após o anúncio
  • Continua após o anúncio
  • 24/02/2021 08:35
    Por Ubiratan Brasil / Estadão

    A história já se tornou folclórica na Broadway: o ator, rapper e compositor Lin-Manuel Miranda estava de férias em julho de 2008, depois do sucesso de seu musical In the Heights, quando começou a ler uma biografia de Alexander Hamilton (1755-1804), um dos fundadores da política americana, além de ter sido o primeiro secretário do Tesouro da história dos EUA. Antes mesmo de terminar o segundo capítulo do livro com mais de 800 páginas, Miranda começou a pensar na vida de Hamilton como uma série de canções de hip-hop.

    Amigos comuns o apresentaram ao autor do livro, Ron Chernow, e, já no ano seguinte, Miranda criara o que viria a ser o número de abertura de Hamilton que, desde sua estreia em 2015, se tornou um dos mais lucrativos musicais da Broadway, faturando US$ 400 milhões apenas na bilheteria. E sua versão filmada concorre em duas categorias no Globo de Ouro, cuja cerimônia ocorre no domingo, 28: melhor filme e melhor ator (Miranda), ambos na categoria de musical ou comédia.

    “Na primeira vez que me encontrei com Lin-Manuel Miranda, em 2008, ele me disse que a vida de Hamilton era ‘uma narrativa clássica do hip-hop’ e eu não tinha ideia do que ele estava falando”, contou Chernow ao Estadão. Sua biografia, lançada em 2004, chega agora às livrarias brasileiras e foi responsável pelo descobrimento (especialmente nos EUA) de uma importante figura política que, para muitos, não passava da imagem ostentada na nota americana de US$ 10.

    Alexander Hamilton (Intrínseca) é fruto de um meticuloso trabalho de pesquisa, que amenizou a figura do político, apontado por muitos historiadores como um homem arrogante e a serviço dos aristocratas de sua época. Nascido e criado no Caribe, Hamilton presenciou o horror da miséria e da fome até chegar aos Estados Unidos, onde ascendeu de forma espetacular graças a seu talento para assuntos econômicos e políticos.

    Logo se tornou o braço direito de George Washington (1732-1799), considerado um dos Pais Fundadores dos Estados Unidos e seu primeiro presidente. Como primeiro secretário do Tesouro, Hamilton foi decisivo na criação de dois bancos centrais e de diversos sistemas de impostos que deram robustez à economia americana. Pregava o livre-comércio em um mercado dominado por grandes senhores de terra. Figura carismática, exercia ainda forte atração entre as mulheres, o que o tornou protagonista do primeiro escândalo sexual da política americana ao ter um caso extraconjugal. Finalmente, foi morto em um duelo com o vice-presidente Aaron Burr, seu adversário político de décadas. Tinha apenas 49 anos. Sobre o assunto, Chernow respondeu por e-mail às seguintes questões.

    Antes de seu livro, a maioria das pessoas sabia duas coisas sobre Alexander Hamilton: ele está na nota de US$ 10 nos Estados Unidos e morreu em um duelo com o vice-presidente Aaron Burr. Que impressão as pessoas teriam de Hamilton agora?

    Quando comecei a escrever o livro em 1998, Hamilton estava desaparecendo na obscuridade. Ele era considerado um Pai Fundador de segundo nível, em grande parte esquecido ou malcompreendido. Mas pensei que suas contribuições para a saga de fundação da América – vencer a Guerra da Independência, criar uma Constituição e forjar o governo federal – foram tão monumentais quanto as de qualquer outro fundador. E sua história pessoal era claramente a mais dramática e improvável do que qualquer uma delas.

    Por que ele sempre foi retratado como um esnobe feroz, o fantoche dos plutocratas?

    Ao implementar seu programa financeiro no início do governo federal, Hamilton trabalhou duro para que a classe mercantil comprasse dívidas do governo – não porque ele quisesse enriquecê-los, mas para que transferissem sua lealdade dos Estados para o novo governo federal. Seus motivos para fazer isso foram malcompreendidos e os estereótipos históricos, uma vez estabelecidos, podem ser muito difíceis de mudar.

    Thomas Jefferson, que foi o terceiro presidente americano e principal autor da Declaração de Independência, e Hamilton despontam como os personagens mais fascinantes da biografia. Um era antagonista político do outro. É possível dizer que a América seria diferente se não fosse por esse antagonismo?

    O antagonismo pessoal e profissional entre Hamilton e Jefferson, que se originou dentro do gabinete de George Washington, ajudou a definir muitos dos conflitos clássicos da política americana: Estado versus poder federal; uma interpretação estrita versus uma interpretação liberal da Constituição; legislativo versus poder executivo; uma economia agrícola versus uma economia industrial. Tanto Hamilton quanto Jefferson definiram brilhantemente suas posições e seus escritos continuaram a informar e enriquecer nossa compreensão desses conflitos.

    Hamilton acreditava fortemente em um governo central, enquanto Jefferson apostava nos direitos dos Estados. Os Estados Unidos de hoje se parecem mais com Jefferson ou Hamilton?

    Eu definitivamente acho que os Estados Unidos de hoje se parecem muito mais com a visão de Hamilton do que com a de Jefferson. Jefferson previu um país baseado na agricultura e pequenas cidades. Em contraste, Hamilton tinha uma visão muito mais ampla de uma economia que incluiria a agricultura tradicional, mas também apresentaria bancos, fábricas, bolsas de valores e grandes cidades. Se os dois homens ganhassem vida hoje, Jefferson ficaria chocado, não Hamilton. Ele olharia com conhecimento de causa para Jefferson e diria: “Eu te avisei”.

    A sexualidade de Hamilton é, algumas vezes, questionada. Como você o define sexualmente falando?

    No livro, especulo que, no início da idade adulta, na época de sua ardente amizade com John Laurens, Hamilton pode ter sido bissexual. É um pouco difícil definir isso porque os homens às vezes escreviam em um estilo muito mais floreado uns para os outros do que hoje em dia. Mais tarde, não há indicação de que Hamilton tivesse qualquer interesse romântico por homens, enquanto sua atração por mulheres era amplamente aparente para muitas pessoas.

    O que você pensou quando Lin-Manuel Miranda disse que a história de Hamilton era uma narrativa clássica do hip-hop? Talvez porque Hamilton fosse um homem incansável?

    Na primeira vez que me encontrei com Lin-Manuel Miranda, em 2008, ele me disse que a vida de Hamilton era “uma narrativa clássica do hip-hop” e eu não tinha ideia do que ele estava falando. Ele não estava exatamente testando meu conhecimento. Com o tempo, percebi que a música hip-hop funcionou espetacularmente bem para a vida de Hamilton porque ele é apresentado no show como uma personalidade intensa e motivada e isso se encaixa no ritmo pulsante da música. Uma grande inspiração de Lin-Manuel, que sabia quando estava mudando a história e sempre teve uma razão convincente para tal licença dramática.

    Na sua opinião, por que o espetáculo se tornou um fenômeno?

    Os americanos tendem a ignorar a própria história – talvez isso se aplique a todos os países – e os fundadores em particular pareciam estar distantes, um grupo mofado de velhos com cabelo empoado e sapatos com fivela. O musical sacode a poeira dessas figuras e as apresenta com seu fogo e paixão originais. Usando um som e uma sensibilidade contemporâneos, o espetáculo oferece uma ponte pela qual o público pode cruzar para um passado distante que antes poderia ter sido inacessível para eles. É uma sensação extremamente emocionante.

    HAMILTON

    Autor: Ron Chernow

    Trad.: Donaldson M. G. e Renata Guerra

    Ed.: Intrínseca (896 págs., R$ 69,90)

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

    Últimas