‘Bata Antes de Entrar’ se vale de narrativa simples para um drama bem atual
Um dos filmes brasileiros recentes preferidos do diretor de teatro Eduardo Tolentino de Araujo é Canastra Suja, realizado por Caio Sóh, em 2016. No longa, um casal de classe média baixa (Marco Ricca e Adriana Esteves) vive em permanente batalha para lidar com as dificuldades financeiras, a criação dos filhos e o uso excessivo do álcool por parte do marido. “São questões cotidianas que rendem ótimas dramaturgias e estão ausentes em um momento em que discussões políticas e sociais – que, óbvio, também precisam aparecer – dominaram o cinema e o teatro”, justifica Tolentino.
Foi esse enfoque, o da narrativa das coisas simples, que chamou a atenção do encenador em Bata Antes de Entrar, comédia dramática escrita por Paola Prestes, que estreia sob sua chancela nesta quinta, 30, no novo Espaço LAB do Teatro Aliança Francesa. A sala multiúso, localizada no segundo andar da sede da Vila Buarque, já foi testada inclusive pelo próprio Grupo Tapa, de Tolentino, e, depois de ampliada, oferece a possibilidade de receber montagens em arena, semiarena e palco italiano. “A peça mostra uma família contemporânea e nada disfuncional, como muitas daquelas que frequentam teatro no Brasil, e aposta em questões comuns, algo determinante, por exemplo, para o sucesso do cinema argentino”, reforça o diretor.
Como tantas mulheres de sua geração, Tereza (interpretada por Clara Carvalho), hoje perto dos 60 anos, se casou cedo, viu os filhos crescerem e, mesmo cansada da falta de compreensão, só se separou de Jaime (Norival Rizzo), o típico provedor, às vésperas dos 40.
Conflitos
A ação se desenrola logo depois do enterro do pai dela, em que os conflitos são trazidos à tona na presença do ex-marido e dos dois filhos do casal, Beatriz e Kiko (Karen Coelho e Victor Hugo Sorrentino). “Trato de uma mulher que foi criada para preparar um ótimo suflê e, com a revolução sexual, se viu cheia de expectativas para se tornar uma grande profissional, uma mãe exemplar e ter uma vida sexual incrível”, explica a autora, estreante no teatro.
Tolentino vai um pouco além e aproxima Tereza da protagonista do clássico Casa de Bonecas, peça escrita pelo norueguês Henrik Ibsen em 1879, em que a personagem Nora abandona a família para tocar a própria vida. “Neste caso, temos uma espécie de Nora tardia, que demorou demais para sair de casa e sente os efeitos dessa decisão, como, de fato, aconteceu com as mulheres brasileiras”, sublinha. Clara salienta, por sua vez, as imperfeições da sua personagem. “O que me cativa é que Tereza nem sempre tem razão, pelo contrário, ela é cheia de contradições, de chatices e, mesmo brigando com Jaime, tendo um senso de humor ácido, cruel, eles ainda nutrem um grande afeto um pelo outro.”
Apaixonada pelo universo do teatro desde a infância, Paola Prestes, hoje com 59 anos, tem uma história próxima à de sua criatura. Viu seu longo relacionamento findar por causa do desgaste do tempo e, mesmo com os diálogos da peça na cabeça, demorou para colocá-la no papel justamente por reverenciar demais esse meio. “O cinema, de onde venho, precisa de dinheiro, então faz mais concessões. O que vejo no teatro é uma admirável dignidade”, diz.
Paola dirigiu, entre outros, o documentário Flávio Rangel, O Teatro na Palma da Mão (2009), sobre o encenador, e se aproximou de Tolentino e Clara como espectadora das peças do Tapa. Durante a pandemia, já com o projeto em busca de recursos, foi aluna de cursos online de dramaturgia e interpretação ministrados por eles. “Eu me sinto realizada, porque criei os diálogos ouvindo a voz da Clara nas falas de Tereza”, declara ela.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.