• Barquinho: a navegação que virou atração

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  • 21/05/2019 14:35

    Contra a correnteza, o navio se opunha ao fluxo da natureza. Supostamente ancorado, estrelava as aventuras de quem o contemplava. Modesto, era suficiente para a manifestação de candidatos à tripulação. Quem diria que, em pleno Rio Piabanha, a construção do Barquinho faria da navegação, verdadeira atração.

    Convite para se deixar levar e arriscar, o Barquinho do Bingen teve duas eras no comércio: uma como mercearia – época em que, para os pequenos, conhecer o interior da embarcação era uma opção – e a outra, enquanto casa noturna. A comerciante Cira Rodrigues, de 66 anos, relembra as compras de mantimentos para o almoço feitas por ela no navio, a pedido do pai.

    “Morávamos na Manoel Torres e, como meus irmãos já estudavam, quem mais ia lá era eu. Era uma experiência maravilhosa. Me lembro que a parte interna era bem normal. Vendia toda essa parte de mantimentos: legumes e verduras. Feijão e arroz a gente apanhava no cesto grande e pesava. Ainda não era ensacadinho não”.

    Por outro lado, depois que se tornou discoteca, a singularidade do Barquinho fomentava a curiosidade de quem o via à noite, com as luzes acesas. Para as crianças da época, como foi o caso da jornalista e publicitária Heloisa Cavaco, de 61 anos, era torcer para logo crescer e ter a oportunidade de adentrá-lo.

    “Quando se é da Serra, você nasce minhoca, então está acostumado a ver montanha, orquídea. Me lembro de pensar assim: se Petrópolis não tem praia, como é que vai ter barco? Era o lado bem lúdico daquilo que a gente não tinha. O Barquinho não combinava com o cenário, destoava, mas para mim de uma forma positiva porque eu queria crescer para estar ali, de preferência velejando”. 

    Tendo fechado antes que Heloisa atingisse a maioridade, pode-se dizer que a petropolitana precisou se contentar com contemplá-lo de longe. E, assim como ela, o aposentado Eloir Stützel, de 66 anos, confessa que a curiosa construção era motivo suficiente para fazê-lo trocar de assento no ônibus e vê-la mais de pertinho.

    “Eu morava em Cascatinha e minha avó no bairro Castrioto. Me lembro perfeitamente que quando a gente ia visitá-la eu fazia questão de ir do lado esquerdo e de voltar do lado direito, só para ver o navio. O que mais me chamava atenção era o barco estar contra a correnteza. Durante o dia ele ficava fechado, mas uma vez cheguei a descer e a ir bem na frente dele”.

    Morador de Niterói há quase 50 anos, Eloir explica que, apesar de nunca ter se envolvido ou trabalhado com embarcações, sempre se interessou por elas. E parece que a recíproca é verdadeira porque, por onde passa, lá estão elas. De Petrópolis, se mudou para São Gonçalo onde, segundo ele, vê navios tomarem forma e serem lançados na água.

    Foto: Reprodução Internet

    Foto: Bruno Avellar

    Barco à vista

    O hoje aposentado Derly da Silva Machado, de 82 anos, explica que foi navegando por águas petropolitanas que, numa noite como qualquer outra, acompanhado dos amigos Ívano Menezes de Souza, Suad Abdaud e Fares Abdaud, avistou uma oportunidade de negócio: “por que não montarmos uma boate aqui?”, revive ele.

    “Éramos amigos, nascidos e criados em Petrópolis, e nunca pensamos que trabalharíamos juntos. O Ívano era da Receita Federal, eu trabalhava no banco Crédito Real e o Abdaud era o filho dos donos da Casa Matriz. Foi minha primeira experiência com o comércio e um hobbie que dava uns troquinhos”. 

    De acordo com Derly, a boate durou, em média, cinco anos. Ainda segundo ele, nesse meio-tempo a casa recebeu grandes nomes, como Wilson Simonal e Grande Otelo. Em pouco tempo, o Barquinho, cujo movimento era certo nos fins de semana, se tornou ponto de encontro da “nata dos veranistas” da época. 

    “Tínhamos umas dez mesas e aqueles bancos em volta, igual a um navio, com as escotilhas e uma porta de aço que fizemos. Enchia logo. Servíamos todo tipo da bebida, mas principalmente Cuba Libre, Hi-Fi e sanduíches; e levávamos aqueles discos compactos, pequenininhos, de 45 rotações. Me lembro que era uma animação sempre que tocávamos ‘Trem das Onze’”. 

    Íntimo, o ambiente oferecia diversão e descontração na medida. O arquiteto Paulo César Hoelz, de 74 anos, conta que foi ao Barquinho que recorreu na véspera de sua prova de acesso à faculdade de Arquitetura e Urbanismo. E não é que a saidinha deu sorte? Ele não só passou no vestibular, como há 44 anos tem sua própria firma.

    “Acho que não foi a primeira vez em que estive no Barquinho, mas talvez tenha sido a última. Foi divertido, bom para descontrair. Me formei em 1970 e até hoje tenho uma empresa de projeto e construção em funcionamento. Um dos projetos que desenvolvi foi o do Centro Esportivo da UCP no Bingen”.

    Para a aposentada Maria Aparecida Nunes, de 67 anos, a farra no Barquinho fazia parte de sua rotina escolar. Moradora do Bingen, tinha o navio como parada obrigatória a caminho do colégio. “Brincávamos de esconde-esconde, nos escondíamos para dar susto nas outras crianças, corríamos em volta do navio, batíamos papo. Era muito legal. A vida era assim, colorida”.

    E foi assim, incessante, que a destoante construção de um Barquinho se tornou uma atração ecoante.

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