• Audrey Diwan: ‘Quis retratar o momento inicial do empoderamento’

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  • 13/07/2022 08:05
    Por Rodrigo Fonseca, especial para o Estadão / Estadão

    Ganhador do Leão de Ouro de Veneza de 2021, O Acontecimento, dirigido pela francesa de origem libanesa Audrey Diwan, está em cartaz nos cinemas. Com base na literatura memorialista da romancista Annie Ernaux, o longa recria a França do início dos anos 1960, quando o aborto era ilegal e poderia levar mulheres à cadeia.

    Escritora e roteirista de thrillers, Audrey só havia dirigido um filme, Mais Vous Êtes Fous (2019), quando enveredou pelas memórias de Annie. Em sua adaptação, ambientada em 1963, a estudante de Letras Anne (Anamaria Vartolomei) tenta abortar uma gravidez indesejada, mas encara os riscos da ilegalidade, deixando sua própria saúde em perigo. Na entrevista a seguir, concedida ao Estadão, via Zoom, a realizadora de 42 anos traça um panorama crítico da sociedade europeia que condenou o gesto de Ernaux sem compreender seus sentimentos.

    O que o livro ofereceu como cartografia afetiva da França dos anos 1960?

    A narrativa literária de Annie não se expressa por meio de rubricas intelectuais de tom político sobre o aborto. Ela dispensa isso ao se abrir e compartilhar conosco sua jornada pessoal, com a coragem de falar de desejo, do flerte que leva ao sexo e da solidão inerente ao desamparo de um Estado que julga, mas não ajuda. Há 60 anos, a ausência de uma perspectiva humanista nas legislações sobre o aborto, ou seja, sobre o corpo feminino, levou muitas jovens ao desespero. A universalidade do filme que eu construí a partir da leitura das páginas de O Acontecimento não está no aborto, em si, mas em toda a trajetória de alguém que compartilha seus sentimentos conosco. A sequência do urro de dor de Anamaria Vartolomei não é uma síntese. É mais uma vivência. Uma vivência cruel.

    Em que aspecto o filme, que remonta à Nouvelle Vague, dialoga com a tradição cinematográfica de seu país?

    Para quem vive na França, a Nouvelle Vague não é um fenômeno nacional e, sim, um evento intelectual de Paris que reverberou pelo mundo, mas não impactou todo o nosso país em nível proletário. O que mais me interessava aqui era retratar o momento inicial de empoderamento discursivo de uma juventude na qual as mulheres tiveram voz ativa.

    Sandrine e Anamaria vivem mãe e filha numa relação de sorrisos, de poucos gestos, em que se divertem juntas. Como é o desenho de maternidade que você construiu?

    É um desenho carregado de conflitos sociais, pois existe um abismo em termos de formação intelectual entre as duas, uma vez que a personagem de Anamaria teve a chance de estudar, e numa metrópole, cursando universidade. Sua mãe, não. Existe, portanto, na figura da protagonista uma culpa social que vem do sentimento de não trair a mãe, ao quebrar com as expectativas dela. A mãe esperava que a filha vencesse socialmente. A gravidez e o aborto ilegal poderiam, na cabeça dela, prejudicar sua trajetória acadêmica.

    Sua relação com o cinema começa por uma trajetória pela palavra, como roteirista. Como essa experiência edificou a sua formação como realizadora?

    Não esperava iniciar uma carreira como realizadora. A ideia era seguir escrevendo. Fui dirigir por necessidade, para poder viabilizar projetos. Sinto que levei da minha vivência como roteirista o apreço pelo silêncio, mais do que pela palavra. Sem ruídos, as personagens embarcam num monólogo interno onde se entendem mais e onde nós podemos entendê-las melhor.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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