• As várias fases e faces de Rita Lee, a roqueira bem-humorada

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  • 07/10/2021 09:00
    Por Danilo Casaletti, especial para o Estadão / Estadão

    Qual a maneira de um fã chegar o mais próximo possível do seu ídolo? Tentar uma vaga na fila de camarim? Comprar um ingresso no gargarejo? Segui-lo em hotéis? Colecionar tudo o que sai dele na mídia? Todas essas opções são válidas. Mas e quando o admirado já se aposentou dos palcos?

    No caso de Rita Lee, que fez seu último show em 2012, a solução é correr para a megaexposição Samsung Rock Exhibition Rita Lee, em cartaz no MIS, em São Paulo. Nela – e não é à toa que logo no início há um disco voador pairando sobre a cabeça dos visitantes – é possível ser teletransportado para o universo único e criativo da cantora.

    Realizado pela Dançar Marketing, mesma empresa que trouxe ao Brasil as exposições de Jimi Hendrix (2015) e Nirvana (2017), e com curadoria de João Lee, filho do meio de Rita e Roberto de Carvalho, e direção artística do jornalista Guilherme Samora, o evento vinha sendo planejado e negociado desde 2018.

    Organizada em 18 áreas temáticas, a exposição evita a formalidade de uma linha do tempo certinha demais e, de uma maneira lúdica, faz com que a própria Rita conduza os visitantes por sua história. Uma das maneiras de fazer parte desse universo é acessar os QR codes indicados na sala e ouvir a própria Rita lembrando sua carreira.

    A outra, original, que se torna o grande trunfo da mostra, se dá pelos 42 manequins espalhados pelos dois andares do salão principal do MIS. Eles vestem figurinos que Rita usou desde os tempos dos Mutantes. Há, por exemplo, o vestido que a cantora usou na apresentação dos Mutantes no Festival Internacional da Canção – a foto desse momento estampa a capa do segundo álbum do grupo, de 1969. A peça foi emprestada pela atriz Leila Diniz (1945-1972), que tinha usado na novela O Sheik de Agadir. Rita jamais devolveu.

    Outra peça é o figurino completo que Rita vestiu para fazer a foto de capa do álbum Fruto Proibido, de 1975, um dos mais celebrados de sua carreira e no qual ela, ao lado do grupo Tutti Frutti, lançou sucessos como Ovelha Negra e Agora Só Falta Você. A imagem é reconstruída em 3D, inclusive com os instrumentos originais utilizados no cenário da foto.

    Um dos itens mais pedidos pelos fãs, as botas prateadas de plataforma Biba têm lugar de destaque. Elas foram furtadas por Rita da loja da estilista Barbara Hulanicki, em Londres, em 1973. Anos depois, a designer polonesa passou um tempo no Brasil. Rita a procurou e confessou o crime. No lugar de uma bronca, ganhou os figurinos do show Babilônia. Eles ocupam uma sala toda cor-de-rosa da mostra.

    É incrível notar como Rita preservou esse e muitos outros figurinos, instrumentos e objetos. “Ela é acumuladora, isso é fato. Mas também há o carinho como tudo isso foi feito ao longo dos anos. Tudo sempre foi pensado, desenhado por ela. Para fazer um trabalho, um show, ela criava sempre um storytelling”, explica João Lee, que, junto com Guilherme Samora, guiou a reportagem do Estadão pela exposição.

    Os manequins foram desenvolvidos especialmente para a mostra. Não havia no mercado peças disponíveis que vestissem de maneira adequada as roupas da cantora. E mais: eles têm a cara, o cabelo e as expressões de Rita nas diversas fases de sua vida. Os rostos foram desenhados pela cenógrafa Clívia Cohen.

    Tudo isso foi possível graças a um velho conhecido da artista, o cenógrafo e carnavalesco Chico Spinosa. O primeiro trabalho que eles fizeram juntos foi em 1982, na TV Globo. Spinosa criou para Rita o cenário do especial que ficou conhecido como O Circo. Os adereços estão reproduzidos na exposição. Junto deles, o figurino de gata que Rita usava para cantar Eu e Meu Gato e o corpete com seios postiços com o qual ela soltava a voz em Cor de Rosa Choque. Originais, claro.

    Samora conta que o trabalho de Spinosa foi feito de forma carinhosa e artesanal. “Ele tem cadernos em que anota tudo. Tinha páginas com pedaços de cabelo das perucas, o tom de pele de cada rosto”, diz. Até as estrelas prateadas que decoram uma das paredes foram feitas à mão, uma a uma.

    As perucas foram cortadas por duas cabeleireiras durante quatro dias de trabalho. Elas mostram a Rita loira da fase Mutantes, o vermelho intenso de quando ela se consagrou como a roqueira nacional, o vermelho mais brando que usou por muito tempo até chegar às madeixas brancas que ela ostenta há alguns anos. Esse tom cobre o manequim em que está a roupa que Rita exibiu em seu último evento público, em 2019, quando lançou o livro infantil Amiga Ursa. A roupa foi batizada por Rita como “Fada Vegana”.

    Todo esse capricho impressiona os fãs que visitam a exposição. Uma mulher, com lágrimas nos olhos, mostra o braço arrepiado para João Lee. “Isso acontece direto”, comenta ele ao Estadão.

    A engenheira Karla Carvalhal, de 45 anos, foi vestida de Rita Lee. Era uma homenagem para a artista que ela venera e que lhe trouxe lições de vida. “Hoje se fala de empoderamento, mas Rita fazia isso lá atrás”, diz. “Com seu legado, ela promove a expansão da consciência até mesmo das crianças”, completa.

    De acordo com João, Rita “tem e não tem” consciência de que é uma verdadeira estrela da música brasileira. “Eu também demorei a ter. Só a enxergava como pessoa e não como artista”, lembra.

    Os jovens, de fato, e muitos nem a viram no palco, se interessam pela mostra. Misturam-se aos fãs mais antigos e olham com atenção um corredor estreito no qual – não por acaso – foram colocados registros da censura nacional e da ditadura militar. São acusações de “comunista”, letras censuradas e uma carta que recebeu da mãe durante o tempo em que ficou na prisão, acusada de porte de maconha.

    Em uma sala batizada de “estúdio” é possível ouvir músicas como Atlântida e Baila Comigo remasterizadas com a tecnologia Dolby Atmos, que simula o áudio em 3D. Em breve, Change, canção que Rita lançou em 27 de setembro – a primeira dela em quase uma década -, também estará disponível.

    Composta em parceria com Roberto de Carvalho e com participação do DJ Gui Boratto, a canção, cantada em francês e inglês, fala sobre mudanças e questiona o sentido da vida. Com pegada eletrônica, ela tem atmosfera dos anos 1980.

    Rita, de 73 anos, se trata atualmente de um câncer de pulmão. Segundo João e Samora, ela se recupera bem e entrou na fase final do tratamento. Acompanhou de longe a montagem da exposição, por meio de chamadas de vídeos. “A única exigência dela foi a de que as pessoas saíssem felizes daqui”, diz Samora.

    Segundo os organizadores, a ideia é que a mostra percorra as principais capitais brasileiras. A próxima cidade a recebê-la – ainda sem data prevista – provavelmente será o Rio. Há ainda o projeto de levá-la para outros países. Portugal e Estados Unidos são lugares já cogitados.

    Destaques

    A blusa e a calça que Rita usou na capa do LP de 1980, o que tem Lança Perfume, e no especial Grandes Nomes, da TV Globo. Elis Regina gostou tanto do modelo que pediu para fazer um parecido para seu derradeiro show, em 1981.

    O piano de quase 100 anos que pertenceu à mãe de Rita, Chesa. Nele, a cantora compôs Coisas da Vida. Foi a peça que ela mais relutou em ceder para a mostra.

    O figurino que a cantora usou na turnê Refestança, que fez ao lado de Gilberto Gil, em 1977. Os dois haviam acabado de sair da prisão. A peça, impecavelmente conservada, foi costurada por Chesa.

    O álbum de figurinhas de Peter Pan, dos anos 1950, que a própria Rita cortou e colou cuidadosamente. Tanto tempo depois, é possível ver o capricho com o qual ela completou o livrinho. A cara dela.

    Em uma estante, objetos da casa de Rita. Muitos ficam em seu altar particular, como é o caso de um boneco do Dr. Spock. Entre as relíquias, um quadro pintado pela atriz Elvira Pagã.

    Em uma ala da exposição, que é dedicada ao amor de Rita e Roberto, há uma letra inédita, Prometida, vetada pela censura na época. Composta antes de Mania de Você, era para ser a primeira canção sensual do casal.

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