As origens da burocracia brasileira
Estudos e pesquisas mais recentes começam a nos revelar um outro Brasil bem diferente daquele da historiografia tradicional consolidada. Ao longo da História, a presença de pensadores, filósofos e ideólogos esteve sempre nas origens de bons acertos e de terríveis desacertos da humanidade. Os ideólogos acabaram nos abrindo as portas do inferno no fim da linha. Felizes foram os povos que souberam separar o joio do trigo. Em outras palavras, ciência de ideologia, vale dizer, Adam Smith de Marx, no caso da Economia Política.
Outros povos cometeram enganos semelhantes ao nosso. Rússia e China estão neste bloco. E a correção de rota lhes tomou décadas de desacertos até retomar o rumo certo na economia, mas não exatamente na esfera política. Raymon Aron diagnosticou a obra de Marx com uma frase lapidar, em seu livro já traduzido “O marxismo de Marx”: “Creio não haver doutrina tão grandiosa no equívoco, tão equívoca na grandeza”.
Trata-se de um atestado de óbito de Marx emitido sem pedir licença à esquerda. Entretanto, não impediu uma daquelas situações trágicas em que o morto foi enterrado vivo. Algo semelhante aconteceu conosco em relação à obra de Auguste Comte, o positivista que fez a cabeça de militares e civis, com efeitos desastrosos de médio e longo prazos. Antes de Marx, e sua malfadada ditadura do proletariado, Comte propôs uma ditadura científica para enfiar goela abaixo dos povos. No Brasil, ela teve início em 15 de novembro de 1889.
Douglas North, prêmio Nobel em Economia, nos diz que “instituições são as regras do jogo numa sociedade ou, mais formalmente, são as restrições que nós, humanos, estabelecemos para moldar a interação humana. Elas “definem a estrutura de incentivos das sociedades e, especificamente, das economias”.
Mas instituições podem ser disfuncionais, degenerando em situações tecnicamente denominadas armadilhas institucionais, ou seja, “um esquema geral de formação de normas ou instituições ineficientes, ainda que estáveis”, na definição do economista russo Victor M. Polterovitch, em instigante pesqui-sa publicada no livro, de 2001, “The New Russia – Transition gone awry” (“A Nova Rússia – A transição que perdeu o rumo)”, sem tradução em português.
O trágico é que tais desvios, embora reversíveis, podem se consolidar na vida dos povos até indefinidamente. No caso específico brasileiro, inclusive com reconhecimento constitucional, coube às Forças Armadas tutelar as instituições, inclusive na Carta de 1988. Não obstante posições discordantes, tal situação vem desde 1889, com as sequelas que são hoje de conhecimento público. Na prática, um poder moderador espúrio que não lhes cabe exercer.
Polterovitch faz uma lista dessas armadilhas institucionais: corrupção sistêmica, economia informal avantajada, carga tributária escorchante – atrofiante do investimento privado e do público via corrupção – e a troca direta entre as empresas. Uma listagem fidedigna do que aconteceu no Brasil desde 1889. E que se agravou com a subida ao poder do positivista Getúlio Vargas, em 1930, e que teve seu capítulo de continuação com mais um golpe militar, o de 1964, que tutelou a sociedade civil até 1985. E, estranhamente, indo na direção do sonho dourado da esquerda de criação de muitas estatais a tal ponto de que 2/3 delas foram estabelecidas após 1964 pelos militares.
Vejamos agora a gênese da bur(r)ocracia brasileira. Na segunda metade do século XIX, as ideias positivistas se tornaram moda entre militares e civis, mais naqueles do que nestes. Os cadetes do exército na Escola Militar do Realengo se intitulavam os científicos, em linha com a pregação de Comte. Daí para pôr em prática a ditadura “científica” foi um passo curto. No início da república, era visível a tentativa de dar ordem unida à sociedade civil. Eles se viam como os únicos patriotas, conhecedores dos caminhos de um belo futuro.
Havia, entretanto, um vício de origem extremamente perigoso que floresceu qual erva daninha ao longo de todo o século XX com rebatimentos negativos ainda no atual século. A sociedade civil não reagiu à altura na linha do “Nós pagamos seus soldos, e temos o direito de lhes dizer que tipo de militares queremos em nossas Forças Armadas”. É verdade que a sociedade civil enfrentava um interlocutor com arma na cintura, que podia fazer prevalecer seu ponto de vista na base da força.
Resta-nos, como sociedade civil, a coragem moral para enfrentar esse problema mais que secular. Esse fascínio por ditaduras parece nos perseguir desde 1889. É a opção por não ouvir o povo, a tradicional censura à imprensa. Inclusive agora com Lula e PT. Usar os impostos pagos em benefício de poucos, e não de todos, é vergonhoso. E ainda cultivando um nível de desigualdade brutal oriundo basicamente do desleixo com a educação pública de qualidade.
E isto num país que ao longo do século XIX gozou de plena liberdade de imprensa tanto no primeiro quanto no segundo reinados. Soa patético o argumento de que D. Pedro II se isolou do povo quando havia audiências públicas semanais na Quinta de Boa Vista, uma tradição de seu pai e mesmo de Dom João VI quando aqui viveu na cerimônia do beija-mão. Era ali que ele tomava conhecimento dos pedidos e anseios da população. E isto ainda num regime absolutista!
Os privilégios da alta burocracia tiveram início com o Mal. Deodoro da Fonseca que dobrou seu salário no dia seguinte. E ainda nos decretos baixados para favorecer os militares. E se ampliou muito na alta burocracia civil. Na redação da Carta de 1988, a burocracia se articulou em diversos setores para lhe garantir privilégios com base em direitos constitucionais, coisa que jamais deveria constar de uma constituição em que a preservação do interesse público deveria ter sido seu norte orientador.
E foi assim que o país cultivou uma alta burocracia centrada no próprio umbigo e uma estrutura de poder viciada em privilégios pagos via impostos pelo povo sem ser consultado. O exemplo de desprendimento e antigolpismo de Caxias merece ser honrado e respeitado.
**“Dois Minutos com Gastão Reis: História do Brasil mal contada”.