• As lutas antisistêmicas e seus vários passos

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  • 06/jul 08:00
    Por Leonardo Boff

    Alguns tens afirmado que é mais provável a vinda do fim do mundo do que o fim do capitalismo. Essa afirmação, por irônica que seja, revela o gênio do capitalismo. Ele se instalou a partir do Ocidente e se impôs a todo mundo, até à própria China. Seu escopo é a acumulação ilimitada na pressuposição falsa de que os recursos da Terra sejam também ilimitados. Nada mais enganoso e mentiroso, como o denuncia a encíclica Laudato Sí (n.106), pois a ciência demonstrou a Sobrecarga (Overshoot) da Terra cujos bens e serviços não renováveis e substanciais para a manutenção da vida estão se esgotando. Precisamos anualmente para atender à voracidade desmedida dos países opulentos de 1,7 Terra. Até quando a Terra suportará este saque sistemático não sabemos, mas ela já nos deu sinais de que está chegando aos seus limites, enviando-nos como os eventos extremos, o Covid-19, o aquecimento global e a profusão de vírus e bactérias.

    O traumático é que não entrevemos um projeto de habitação da Terra à vista que poderia ser uma alternativa salvadora. Tudo indica que a seguir, a dinâmica do capital com a utilização de todos os meios virtuais, especialmente a IA, conheceremos desastres ecológico-sociais um mais grave que o outro.

    Um pouco antes de morrer, em 05 de junho se 2017, em Quito, François Houtart, entranhável amigo e conhecido sociólogo belga, conhecedor profundo da América Latina, deixou escrito um artigo inspirador do qual tomamos alguns pontos, pois são muito atuais. O título era: “O conteúdo das lutas antisistêmicas“. Para ele, era claro que a luta não é apenas contra o neoliberalismo mas contra o sistema do capital. Fino marxista e teólogo católico legou-nos uma obra vasta que merece ser resgatada.

    Em primeiro lugar, urge deslegitimar o capitalismo como o verdadeiro câncer da Terra que consome tudo o que pode, através de radical competição, em vista do enriquecimento, o saque da natureza e a exploração da força dos trabalhadores. Isso significa, nas palavras de Houtart, lutar conta as novas fronteiras de acumulação: a agricultura camponesa, a ser transformada numa agricultura produtivista capitalista; a privatização dos serviços públicos; e lucrar com as catástrofes naturais ou políticas. Esta deslegitimação deve ser antes econômica que ética.

    Em segundo lugar, forjar os passos das lutas antisistêmicas

    O primeiro passo é formar a consciência da perversidade humana e ecológica do sistema do capital, que vai além da dominação econômica e política; ele afeta a cultura e penetra no mais profundo das mentalidades. Não lhe interessam gestar cidadãos críticos mas simples consumidores e espectadores passivos da história.

    O fundamental é a articulação de todos os movimentos populares e parte de grupos políticos progressistas. Todos têm o mesmo adversário, enfatiza Houtart: o capital globalizado, especialmente o especulativo (que é a grande parte do capital), que nada produz a não ser mais dinheiro. Cada grupo mantém sua identidade, mas se articula e une contra o adversário comum. Importante, para somar forças, é articular-se com movimentos antisistêmicos do campo político. A luta deve se dar no local, na região e em nível nacional como foi reforçada pelos foros sociais mundiais. Dentro do grupo, pensar um projeto de sociedade alternativo, eco democrático, popular, inclusivo de todos e começar a vivê-lo nos grupos, como já se faz em tantos lugares. É uma semente. Mas é semente fecunda de uma nova sociedade.

    Em terceiro lugar, os eixos de um postcapitalismo ou de um eco socialismo do século XXI

    Não se trata de impor uma doutrina a partir de cima, nem de falar de uma só alternativa. Trata-se de recolher o vivido, reconciliar teoria e prática num esforço coletivo em busca de uma utopia prática, valorizando as utopias mínimas, dos pequenos passos porque o povo não morre ou sofre amanhã, senão hoje.

    Os quatro eixos do projeto antisistêmico e emancipatório:

    O primeiro, a utilização sustentável dos bens e serviços naturais que exige a não exploração, mas a simbiose com a natureza.

    O segundo, privilegiar o valor de uso sobre o valor de troca. O capitalismo fez de tudo objeto de troca em vista do ganho.

    O terceiro eixo consiste em estabelecer uma democracia generalizada em todos os âmbitos, além do político que se entende como um eco socialismo democrático. O poder não é centralizado, mas participativo e circular.

    Quarto eixo, construir a multiculturalidade, quer dizer, dentro da Casa Comum, todas as filosofias, religiões e valores culturais contribuem para criar uma nova sociedade do bem viver e conviver. A cultura do capitalismo com seu modelo de crescimento ilimitado não ajuda em nada nesta construção.

    Tudo o que escrevemos é seminal. Mas tem a potência da semente que dentro de si guarda as raízes, o tronco, as folhas, as flores e os frutos, numa palavra, o futuro possível. Há que se viver o esperançar de Paulo Freire e recordar o oratório que um israelita compôs por ocasião do assassinato do Bispo Arnulfo Romero: “a esperança não se mata”.

    François Houtart (1925-2017).
    Foto: Reprodução
    Leonardo Boff.
    Foto: Arquivo Pessoal

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