‘Arthur.Rambo’, amado e destruído pela mídia
Laurent Cantet já conseguiu colocar os problemas da França dentro de uma sala de aula, em Entre os Muros da Escola, e os de Cuba no terraço de uma casa em Havana, em Retorno a Ítaca. O primeiro foi escrito em parceria como professor François Bégaudeau, o segundo com o escritor Leonardo Padura. Por Entre les Murs, Cantet recebeu a Palma de Ouro em Cannes. Retour à Ithaque dividiu a crítica por conta da sempre complexa questão cubana, mas é belíssimo. Laurent agora conversa pelo telefone, de Paris, por conta de seu novo filme, @Arthur.Rambo – Ódio nas Redes, que estreia nesta quinta, 12.
A França, de novo, e dividida. Um jovem escritor, Karim D, vira a sensação das letras ao dar voz à periferia, à qual pertence. Seu livro, Débarquement, vira a sensação nas livrarias, mas tudo vai para o espaço quando pipocam nas redes sociais antigas mensagens que ele postou sob pseudônimo. A cultura do ódio – todos sabemos o que é isso. Cantet conta que se inspirou num affair real. Ele – e meia França – era leitor do blogueiro Mehdi Meklat no jornal Libération. O carinha era o nome do momento, e então surgiram os tais tweets postados sob pseudônimo. Racistas, xenofóbicos, misóginos, homofóbicos.
“Como todo mundo, fiquei perplexo. Como era possível que a mesma pessoa pudesse se expressar de forma tão contraditória, antagônica? Quem era o verdadeiro Meklat? Enquanto o debate prosseguia na imprensa e nas redes, eu, como cineasta, comecei a pensar que seria um bom ponto de partida para um filme. Trabalhei com dois roteiristas, Fanny Burdino e Samuel Doux. Karim D não é Meklat e nunca foi nossa intenção fazer um filme sobre ele. Das discussões com meus colaboradores, saiu o formato particular, quase um filme de julgamento.”
De que forma? “Karim passa o filme se explicando e sendo julgado, como se estivesse num tribunal, quando a verdade vem à tona. A editora, os amigos que fazem seu programa na internet, o irmão, a namorada, a mãe. Esse formato terminou se impondo naturalmente para o que queríamos dizer.” E o que seria isso, exatamente? “A França é um país dividido. Acompanho o noticiário do Brasil e sei da polarização em seu país, mas aqui nunca tivemos um avanço tão grande da direita, nem uma abstenção tão grande de eleitores. As duas coisas estão interligadas.”
Cantet tem feito filmes políticos. Na França, nos anos 1960 e 70, publicações como Cahiers du Cinéma questionavam o valor do cinema político italiano, de autores como Gillo Pontecorvo, Elio Petri, Damiano Damiani, Francesco Rosi, etc. Fazer filmes com temas políticos ou fazer politicamente os filmes?
A questão permanece no ar. Cantet chegou a ser acusado de adotar formas dramatúrgicas conhecidas, mas também de não saber como terminar seu filme, deixando-o em aberto. Ele discorda, na verdade, concorda com o repórter. Há um momento de Arthur Rambo em que Karim, pressionado de todos os lados, conversa com a mulher que melhor parece entendê-lo. Ele chora. Diz que quer sumir – olha o spoiler. Ela reflete. Karim está aprendendo o que é viver neste mundo. Tomando consciência. Embora o garoto magrebino se chame Karim, seu alter ego nas redes é Arthur Rambo.
STALLONE E RIMBAUD
O público de filmes de ação imediatamente pensa no personagem de Sylvester Stallone, que ganhou, na ficção, todas aquelas guerras em que os norte-americanos se enrolaram, quando não perderam. Vietnã, Afeganistão. Mas assim como Rambo, em francês, pronuncia-se Rambô, há o poeta Arthur Rimbaud, que também se pronuncia Rambo.
Ele escreveu um clássico das letras francesas, Une Saison en Enfer (Uma Temporada no Inferno), e depois foi ser traficante de armas na África. Muita gente polemiza até hoje sobre o enigma Arthur Rimbaud. É o que Cantet e seus roteiristas fazem com Karim D e seu duplo. O jovem se explica, mas nada fica muito claro, se o espectador não se comprometer com os meandros da história.
Karim é interpretado por Rabah Nait Oufella, e é interessante que Cantet tenha recorrido a um dos garotos de Entre os Muros da Escola, de 2008, portanto, há 14 anos. Todos os demais papéis também são interpretados por profissionais. Cantet realiza leituras, permite improvisações, mas quase sempre isso é só para dar segurança aos atores. Quase sempre volta – voltam – à letra do roteiro.
Karim começa simpático – rei do mundo -, mas se enreda cada vez mais nos seus comentários. O antissemitismo faz-se presente. “Na França profunda, esse ainda é um tema relevante. Houve uma França colaboracionista com os nazistas durante a Segunda Guerra. Isso só foi possível porque havia apoio. Essas coisas não desaparecem. Temos de seguir pensando, e criticando isso”, conclui Cantet.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.