Anvisa ameaça ir ao STF contra brecha para aval de vacina aprovada pelo Congresso
O presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres, viu na noite de quinta-feira, 4, concretizar-se a ameaça do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), de “enquadrar” o órgão. Isso porque o Congresso aprovou alterações em uma medida provisória para determinar que a agência “concederá” o uso emergencial de vacinas aprovadas em outros países, incluindo a Rússia e a Argentina. Na leitura de Barra Torres, que estuda ir ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra este item, o texto obriga a aprovar as vacinas mesmo sem uma análise da agência brasileira e lança dúvidas sobre a segurança e eficácia dos produtos que entrarem no País por este caminho.
“Se isso prosperar, a Anvisa passa a ter papel meramente cartorial, deixa de ter seu poder de análise. O texto acrescenta essa questão que seria automática (a aprovação), completamente isenta de análise”, disse o chefe da Anvisa ao Estadão. Barra Torres afirmou que a proposta do Congresso, que segue para a sanção presidencial, “destruirá de forma irreparável” a credibilidade do País. “Para quem estiver de fora do Brasil verá que algum motivo houve (para a mudança na MP), por mais que incompreensível. Certamente a credibilidade do País estará comprometida”, declarou.
A possibilidade de acionar o STF ainda é avaliada. Pode ocorrer tanto se Bolsonaro sancionar o artigo quanto se vetar, mas depois o Congresso devolver o texto.
O artigo atacado por Barra Torres foi inserido na medida provisória ainda na Câmara e chancelado pelo Senado. Já há na legislação a previsão de que a agência “pode conceder” a autorização “excepcional e temporária” para a importação de vacinas registradas nos Estados Unidos, Europa, China, Japão e Reino Unido. O Congresso ampliou este leque, inserindo as agências do Canadá, Coreia do Sul, Rússia e Argentina. Além disso, mudou a redação para determinar que a Anvisa “concederá” esta autorização em até cinco dias, mesmo se estas vacinas tiverem apenas aval de uso emergencial nesses países.
Na leitura da autoridade sanitária brasileira, não há mais margem para uma análise técnica e aprovação tornou-se o único caminho, caso prospere o texto aprovado pelo Congresso.
Relator da MP na Câmara, o deputado Geninho Zuliani (DEM-SP) nega que a Anvisa esteja sem poder para análise de vacinas. “Obviamente que não se trata de um ato puramente vinculado por parte da Anvisa, que poderá, caso não estejam presentes os requisitos legais, inclusive aqueles produzidos em atos infralegais posteriormente editados, negar fundamentalmente o pedido formulado”, afirmou ao Estadão.
“Qualifico esse momento como o mais grave que estamos vivendo da saúde pública nacional nas últimas décadas”, disse Barra Torres. Ele afirma que não tomará vacinas aprovadas desta forma. “Se for dessa modalidade, sem análise técnica da Anvisa, eu não tomarei e não aconselharei ninguém a fazê-lo”, declarou.
O presidente da Anvisa disse que não há razão para tornar o processo automático. “A agência deixou de agir de maneira rápida na análise vacinal? Não. Pelo contrário”, declarou, lembrando que o órgão aprovou o uso emergencial da Coronavac e da vacina de Oxford/AstraZeneca em 9 dias, o que, segundo ele, foi o rito mais rápido visto entre as principais autoridades sanitárias do mundo.
Sob pressão, ministério quer avançar na compra de mais imunizantes
A Anvisa foi “enquadrada” no momento em que Bolsonaro e o Congresso pressionam pela liberação de novas vacinas. Para não depender principalmente da Coronavac, imunizante associado ao governador paulista, João Doria (PSDB), o Ministério da Saúde avança na compra da Sputnik V e da Covaxin, desenvolvidas, respectivamente, na Rússia e na Índia. A Anvisa, porém, ainda aguarda mais dados sobre a segurança e a eficácia destes produtos.
Ex-ministro da Saúde e líder do governo na Câmara, Barros avisou ao Estadão na quarta-feira, 3, que iria para cima da agência. “O que eu apresentar para enquadrar a Anvisa passa aqui (na Câmara) feito um rojão”, disse. “Eu vou tomar providências, vou agir contra a falta de percepção da Anvisa sobre o momento de emergência que nós vivemos. O problema não está na Saúde, está na Anvisa. Nós vamos enquadrar”, completou o líder do governo.
“Ele (Barros) mostrou toda a sua experiência. Concretizou a ameaça feita pela manhã. Esse enquadramento se deu com a aprovação da medida provisória. É um processo que está deflagrado”, disse Barra Torres, que afirma que servidores da agência estão “indignados” com as falas do deputado e o texto aprovado.
Bolsonaro chegou a desautorizar Barros ao afirmar que a Anvisa “não pode sofrer pressão de quem quer que seja”. A declaração foi feita ao lado de Barra Torres, na “live semanal” do presidente, na noite de quinta-feira, 4. “Entendi a fala do presidente como de apoio à agencia”, disse Barra Torres. O chefe do órgão disse que não comentou com Bolsonaro sobre a fala do deputado ou sobre a discussão do Congresso. Afirmou que enviará sugestões de veto ao texto por meio da Casa Civil.
Ao mesmo tempo que prestigia o órgão, porém, Bolsonaro cobra auxiliares pela compra de mais vacinas e vê a Sputnik V e a Covaxin, especialmente, como promissoras. Há ainda forte lobby político pela aprovação dos imunizantes. A Sputnik V, por exemplo, deve ser distribuída no Brasil pela União Química, que fechou contrato com os russos para ainda produzir o imunizante em solo brasileiro.
O dono da empresa, Fernando de Castro Marques, foi candidato a senador pelo Solidariedade, em 2018, mas não se elegeu. O atual diretor de negócios internacionais do laboratório, Rogério Rosso, é uma antiga liderança do Centrão. Foi deputado federal pelo PSD e governador do Distrito Federal.
Barra Torres reconhece que há ofensiva do Congresso sobre a Anvisa, mas poupa o Ministério da Saúde e Bolsonaro das críticas. Apesar de não citar nomes de farmacêuticas ou laboratórios, o chefe da agência sugere que a retirada de poderes da Anvisa pode ter como objetivo aprovar a entrada de imunizantes que nem sequer tem dados robustos de segurança e eficácia. “Vamos ver se empresas que poderiam se beneficiar deram entrada antes ou ficaram apenas aguardando o efeito da MP. Se aguardaram, qual foi o motivo? Aguardaram tendo solidez dos estudos ou não? Se aguardaram não tendo, o risco sanitário não será mais risco. Será ato concreto contra a saúde da população”, disse ele.