• Antiburguês convicto e provocador, Pasolini juntou na tela conflitos, poesia e utopias

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  • 05/03/2022 07:00
    Por Luiz Zanin Oricchio, especial para o Estadão / Estadão

    Cem anos de nascimento de Pier Paolo Pasolini. O que e quem comemoramos nesta data? O cineasta, sem dúvida. Mas como esquecer o poeta, o ensaísta, o polemista, o intelectual de intervenção, o provocador? Pier Paolo Pasolini nasceu no dia 5 de março de 1922, em Bolonha, e morreu, de forma violenta, em 2 de novembro de 1975, assassinado na Praia de Óstia por um garoto de programa. Um crime até hoje envolto em dúvidas. Giovanni Pelosi foi réu confesso, mas, em relação à morte, garantiu que não havia sido ele. Ou apenas ele. Há indícios da presença de outras pessoas na cena do crime.

    Tudo ainda é mistério e faz pensar em uma culpa coletiva – tanto assim que o diretor Marco Tullio Giordana tem um filme chamado Pasolini – Um Delito Italiano (1995). Registra não apenas as dúvidas sobre a autoria do assassinato, mas o mal disfarçado alívio provocado pela morte de um polemista nato, homossexual assumido, que incomodava conservadores, mas também a direita fascista e a esquerda ortodoxa. “Se o inconsciente coletivo italiano falasse, ele diria: ‘Pasolini teve o que merecia'”, comenta Giordana.

    E o que fez Pasolini para “merecer” tanto ódio da maioria silenciosa de seu país? Simples, seu projeto de vida e artístico foi o de um antiburguês convicto. Fustigou o italiano médio, o habitante acomodado da “Italieta” (Italiazinha) como ele chamava o país. Apontou o consumismo, que chegava avassalador após os anos de penúria da guerra, como o novo fascismo, tão demolidor, ou mais, que o regime odioso de Benito Mussolini. Apontou para a decadência da cultura proletária em seu país e no mundo. Sobre os movimentos estudantis de 1968, dizia ter mais simpatia pelos policiais, filhos dos pobres, do que pelos manifestantes, herdeiros da pequena burguesia. Era um marxista cristão – oxímoro que é uma das definições possíveis de Pier Paolo Pasolini. Suas afinidades o aproximavam do lumpemproletariado, a arraia-miúda, os excluídos. A classe média, conservadora, satisfeita consigo mesma e consumista, o repugnava. Era contra a legalização do aborto. Propôs a extinção da televisão e do ensino médio.

    Pasolini expressava sua visão de mundo em poesia, ensaios e nos numerosos artigos que escreveu. Era um polemista. Uma parte desses artigos está na coletânea Escritos Corsários, aqui publicada pela Editora 34. Seus escritos completos ocupam dez volumes na Editora Mondadori.

    A poesia talvez esteja no centro do seu sistema de pensamento. Mas o cinema lhe deu maior visibilidade. Afinal, era “a arte mais importante do século 20”, como dizia Lenin. Ainda com um pé no neorrealismo, a poderosa escola cinematográfica italiana do pós-guerra, Pasolini escreveu roteiros para Mauro Bolognini, Mario Soldati e Federico Fellini – ele é creditado como autor de diálogos em Noites de Cabíria. Escreveu o roteiro daquele que talvez seja o ponto mais alto da carreira de Bolognini, A Longa Noite de Loucuras (La Notte Brava, 1959).

    REALISMO SOCIAL

    Como realizador, Accattone (1961) e Mamma Roma (1962) marcam sua posição no realismo social, retratista sem retoques da vida difícil dos desvalidos. Accattone (Franco Citti) é um cafetão que tenta mudar de ramo, mas não se adapta ao mundo do trabalho. Em Mamma Roma, Anna Magnani interpreta uma prostituta que espera mudar de vida e reconquistar a estima do filho, Ettore. Em ambos, a aspiração lúmpen à vida pequeno-burguesa se choca com a dureza de pedra da realidade da sociedade de classes.

    Em documentários, Pasolini desenvolve suas ideias sobre uma sociedade tão rígida quanto hipócrita. Em Comícios de Amor (1963-1965), ele faz uma enquete sobre a sexualidade, percorrendo a Itália de Norte a Sul e sendo, ele próprio, o entrevistador. Constata, com surpresa, o falso moralismo com que o tema da sexualidade é tratado em plenos anos 1960, tidos como libertários. O romancista Alberto Moravia, seu amigo, serve ao filme como comentador dos depoimentos.

    Outro doc a ser lembrado é La Rabbia (A Raiva, 1963-1964), com narração poética de um texto do autor e imagens de um mundo em transe, pós-bomba atômica e já carente de referências. Um ponto alto são as imagens suntuosas do enterro do dirigente comunista Palmiro Togliatti (1893-1964). Sente-se um tom de fim das utopias revolucionárias.

    Logo em seguida, Pasolini faria aquela que para muitos é sua obra-prima, O Evangelho Segundo São Mateus, com a imagem de um Cristo agitador, dosando bem as medidas do seu autor, entre o marxismo radical e um catolicismo exasperado, primitivo, distante das pompas do presente. A Palestina foi, na verdade, filmada em Matera, no sul da Itália. O Cristo de Pasolini é aquele que diz: “Não vim trazer a paz, mas a espada”. Muitos analistas veem nesse Cristo uma autorrepresentação de Pasolini.

    Em Gaviões e Passarinhos (1965), reúne Totò e Ninetto Davoli como pai e filho, perambulando pelas estradas em companhia de um corvo que se autodefine como intelectual de esquerda e termina devorado. Nessa fábula de canibalismo popular, Pasolini usa o riso para criticar a incapacidade dos intelectuais de esquerda em estabelecer diálogo com as classes populares. Atual, não é?

    Teorema (1968) é tida como a obra-cabeça de Pasolini, filme enigmático e desafiador. Um desconhecido (Terence Stamp) chega a uma família burguesa e a desagrega fazendo amor com cada um dos integrantes da casa. O poder corrosivo da sexualidade?

    Pocilga (1969) é visto como um dos filmes “insuportáveis” do cineasta. Em suas histórias paralelas, uma no século 16 com um grupo de canibais, outra na Alemanha contemporânea, o foco aparente é a mais tosca degradação humana. Mas, ajustado o foco, vemos aí a perda da dimensão do sagrado como elemento dessa queda – tema pasoliniano que aparece em outras obras de maneira obsessiva.

    RELEITURAS

    Também assim são Édipo Rei (1967, com Franco Citti) e Medeia (1969, com Maria Callas), suas releituras do teatro grego de Sófocles e Eurípedes. De um lado, há esse olhar pré-cristão, o mundo sagrado que tanto o fascinava, um mundo antigo sempre fechado para nós, que se manifesta através de ruínas, obras incompletas, narrativas orais, sintomas. Essa linguagem antiga faz respirar um mundo estranho, ainda não corrompido por dois milênios de ética judaico-cristã. É como um ruído de fundo da nossa civilização, que só a poesia sabe escutar.

    A chamada Trilogia da Vida (Decameron, 1971; Contos de Canterbury, 1972; As Mil e Uma Noites, 1973) representa um grande sucesso na carreira de Pasolini. Odes ao amor, ao sexo, ao humor, tiradas de Boccaccio, Chaucer e das narrativas árabes. Mas Pasolini desconfiou que estivesse sendo absorvido pela sociedade burguesa que tanto combatia.

    Assim, sua resposta a si mesmo foi o terrível Salò – Cento e Vinte Dias de Sodoma, unindo a pulsão de morte do fascismo (que ele sentia redivivo) à narrativa subversiva do Marquês de Sade. É sua última obra, a utopia de mostrar-se indigerível a um sistema que tudo devora. É seu legado. Uma herança terrível, mas preciosa, que precisa ser revisitada.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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