• Angeloromerear, vencer pelo sonho

  • Continua após o anúncio
  • Continua após o anúncio
  • 13/10/2021 15:39
    Por Ataualpa Filho

    Hoje trago, mais uma vez, o peito ferido pela ausência. A morte bem que poderia ser um pouco mais compadecida. Chega, leva os nossos amigos sem dar nenhuma explicação: não diz o porquê, não avisa, explica nada. Apresenta-se como a senhora da vida. E ficamos assim tentando conter, reter a dor com lembranças.Quando, sobre o viver desce este truvo, o juízo perde o cabresto: vagueia…

    A morte desorienta. Não tem lógica. Em miolo algum, há explicação concreta. O etéreo nada angustia pelo vazio. O é torna-se era. E ficam as memórias para consolar o presente desfeito por um golpe irreversível para os humanos. A desintegração das vísceras não é o fim. Creio em uma outra dimensão, em um outro espaço purificado, no qual reina o Supremo Bem. Um espaço sem morte. Na fé, encontram-se os caminhos que conduzem ao outro lado do existir. Sair do pó ao pó sem deixar pegadas, sem passar por nenhum coração, sem ser útil a ninguém consiste em uma existência insípida.

    O meu amigo Ângelo Romero, em uma manhã de domingo, partiu. Pegou um sono profundo e embarcou. Como eu tinha cadeira cativa em seu teatro, dou-me ou direito de bater palmas de pé ao final deste ato. E, como um fã fervoroso, grito: –Bravooooo! – “Foi poeta – sonhou e amou na vida”.

    O Ângelo foi personagem de suas obras. Era um artista, porque sonhava. Sonhava, porque era artista. Neste ciclo, rompeu com a realidade, lirificando-a. Teve como lema o pensamento de Charles Chaplin: “O homem não morre quando deixa de viver e sim, quando deixa de sonhar”. Essa frase era a epígrafe do “Carlito’s News”,fanzine que ele, por muitos anos, manteve para divulgar os seus textos e os textos do pai, o jornalista, historiador e poeta apaixonado pelo teatro Abelardo Romero. Em “Carlito’s News”, ele publicava mensalmente as datas dos aniversários dos amigos. No meu aniversário, sempre recebia uma ligação dele. A reciprocidade ocorria, porque eu sabia que ele também gostava de ser lembrado.

    O amor pelo pai levou-o a construir um teatro na própria casa. Transformou a garagem em palco. Na área de estender roupa, moldou o espaço para a plateia com 60 lugares. No quarto de empregada, colocou a parte técnica, a mesa de controle de som e a mesa para controle de 40 refletores. Comprou tapetes e cortinas e colocou um letreiro na entrada: “Teatro Abelardo Romero”.

    Ele escreveu uma peça especialmente para inauguração do espaço: “A Coroação de Miss Coroa”. Ao final do espetáculo, demonstrou a emoção da realização de um sonho.Eu e Marta tínhamos lugares cativos, reservados com direito a nome nos assentos. Sentíamos privilegiados e com o compromisso de prestigiar todos os eventos programados.

    Depois que ele mudou da casa para morar em apartamento, passamos a frequentar as sessões de cinema que ele exibia no espaço da sala. A projeção era feita por ele em uma parede. Assisti a vários clássicos, com direito a pipoca, cafezinho e comentários sobre o filme. Às vezes, até sobrava um tempinho para ouvir as aventuras dele no tempo das lambretas.  Foram belas tardes de domingo!… Embarcávamos nas revivênciasnostálgicas…

    Ele era fascinado pelo teatro de revista. Ouvi várias histórias do tempo em que ele frequentava a fase áurea da praça Tiradentes no Rio de Janeiro. Às vezes, eu pensava assim: o Ângelo deve sonhar contracenando com Fred Astaire, cantando ao lado de Liza Minnelli, fazendo dueto com Frank Sinatra em “New York, New York”, ou participando, como galã, de uma produção hollywoodiana. Também achava que ele se via como personagem de um clássico como “Casablanca”.

    O poeta, o romancista, o dramaturgo, o diretor de teatro, o ator tinham uma fiel escudeira: Nancy.

    Temos também que aplaudir quem trabalha nos bastidores. Ela esteve ao lado dele em todos os sonhos.

    Angeloromerear consiste em querer domar o destino pelos sonhos. Lirificar a realidade e não se render nessa luta. As adversidades são suportadas pelo sabor da arte. Tudo é pouco no delírio.

    Oniricamente, para o Ângelo, o mundo era um palco; a vida, um espetáculo. Ele escolheu Petrópolis com principal cenário do seu show. Agora esse show continua em outra dimensão. As cortinas do céu se abriram e mais um astro subiu para compor a constelação celeste.

    Repito:–Bravooooooo!…

    Últimas