• Ancestralidade e mestiçagem

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  • 28/set 08:00
    Por Gastão Reis

    Ancestralidade é algo que marca profundamente a História dos povos. Diz respeito a nossos antepassados. A maneira de vê-los e cultuá-los, que pode ser positiva ou negativa, é crucial em nossa visão de futuro. Essa positividade, ou negatividade, define o hoje de cada país. Ainda me lembro bem dos meus tempos na Universidade da Pensilvânia, entre 1977 e 1980, quando assistia televisão, a relativa frequência com que os americanos se referiam aos EUA de modo positivo, vendo-se como uma grande nação.

    Esse enquadramento mental positivo não é bem o que ocorre no caso do Brasil. Fomos tomados por uma historiografia capenga que, por falta de pesquisas mais aprofundadas ou insuficiências do marco teórico adotado, caso do enfoque marxista de Caio Prado Jr., dentre outros, nos levou a ver o nosso passado como sendo o de uma colônia de exploração, em que Portugal só se interessava em arrancar daqui tudo que podia sem nos dar nada de real valor em troca, e que nos preparasse para um grande futuro.

    Pior ainda foi enxergar nossa História de modo estanque, à parte do resto do mundo, sem fazer história comparativa, e projetando nossos valores de hoje sobre nosso passado. Duplo erro que teve consequências funestas sobre nosso modo de nos vermos. Por outro lado, existe uma outra historiografia, rica em novas pesquisas, que nos permitem desvendar o que realmente aconteceu.

    Em artigos anteriores, já havia mencionado autores que se enquadram nesse grupo comprometido com fatos concretos, dentre eles os diplomatas historiadores, que nunca se perderam em vias equivocadas dada a tradição de irem às fontes. A boa notícia é que as novas pesquisas confirmam, em linhas gerais, o legado que nos deixaram. Mas a novidade está num livro, lançado em 2022, pelo deputado federal e cientista político, formando na Universidade de Stanford, Luiz Philippe de Orleans e Bragança, intitulado “Império de Verdades – A história da fundação do Brasil contada por um membro da família imperial brasileira”.

    Antes, caro(a) leitor(a), que possa pensar que se trata de uma obra laudatória de sua família, importa deixar claro que está longe disso. Na verdade, é um livro que revela um pesquisador equilibrado, que domina plenamente as ferramentas do historiador, e que vai às fontes, sabendo fazer história comparativa. E que não se perde em ver o passado com os valores do hoje. O livro reflete a profundidade e a solidez das fontes consultadas por ele, aqui e em Portugal.

    Vejamos o que ele nos revela sobre Dom João VI, nosso ancestral comum, cuja obra como governante foi notável e única no mundo, ao se deslocar de uma metrópole europeia para a terra brasilis, mantendo a integridade e a soberania do império português em terras brasileiras diante dos arbítrios e autoritarismo de Napoleão, que reconheceu ter sido ele o único que o enganara.

    Transcrevo abaixo um trecho do que nos diz Luiz Philippe sobre D. João VI.

    “Outra característica de homem extremamente profissional era a sua pontualidade. D. João VI odiava atrasos. Esse workaholic chegava no Paço antes do amanhecer e reunia-se até as 11 horas da noite, permitindo audiências a quem estivesse presente. Era conhecido por sua paciência em escutar os súditos nessas longas audiências e participar com comentários, mostrando profundo respeito por quem lhe falava. Também aceitava críticas sem qualquer ofensa”.

    Cabe complementar que brasilianistas que se debruçaram sobre nossa história assinariam embaixo do parágrafo anterior. Como então fica aquela figura abestalhada de D. João VI do filme de Carla Camurati “Carlota Joaquina, Princesa do Brasil”? Filme baseado em pesquisa rasteira em que os únicos abestalhados foram os atores que se prestaram a tal papelão.

    Passemos agora à questão da mestiçagem, cuja abrangência no Brasil desconhece paralelo no mundo.

    Mas o Brasil não foi o único país onde isto aconteceu. Ainda me lembro de um livro sobre a Grécia antiga, cujo título e autor me escapam no momento. O autor nos informava que a Grécia de tempos remotos teria sofrido uma intensa miscigenação de que participaram diferentes povos da época naquela região. Depois houve uma espécie de decantação que levou ao perfil étnico do grego com suas características bem definidas.

    Cabe especular que a vitalidade intelectual de Atenas em todas as áreas do conhecimento deva algo a essa miscigenação ocorrida anteriormente. Mas o que se sabe, cientificamente, é que casamentos entre parentes próximos tendem a produzir uma prole até mesmo com problemas mentais. As 30 dinastias do Egito antigo, em que a família do faraó se casava entre seus membros, duravam em média um século ou menos, parecem ter sofrido um processo de degeneração. É um tempo de duração relativamente curto para uma dinastia. Nada disso acontece com o processo de miscigenação, cujo efeito é o oposto. Confere vitalidade.

    E aqui entramos naquela história preconceituosa da necessidade da política de embranquecimento para o Brasil se desenvolver posta em prática nas primeiras décadas da república brasileira, no início do século XX. Qualquer dúvida, é só comparar o percentual de negros, mulatos e pardos no final do Império e o que os censos de meados do século XX revelam. Ou seja, foi posta em prática.

    Na verdade, as pesquisas mais recentes sobre o crescimento da renda real per capita ao longo do século XIX, como a dos professores Bacha, Tombolo & Versiani, nos revelam que o Brasil acompanhou o resto do mundo com um percentual em torno de 1% ao ano. Ou seja, o País se saiu bem diante do mundo mesmo contando com uma grande população de origem africana, mulata e parda. Fica difícil justificar a política de embranquecimento posta em prática. Menos ainda criticar a miscigenação.

    Em suma, é preciso valorizar nossa ancestralidade miscigenada como fator de progresso. O crescimento lento do Brasil nas últimas décadas se deve, sim e eminentemente, a fatores de ordem político-institucional. Em especial, à perda de controle sobre os desmandos do andar de cima que a república consolidou na ausência do poder moderador.             

    **Nota: Digite no Google “Dois Minutos com Gastão Reis” para me conhecer melhor ainda.

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