América Latina flerta com as criptomoedas
Quando José Avilez começou a trabalhar com videogames na Venezuela, não imaginava que isso mudaria sua vida. Com a ampliação do uso de criptomoedas para driblar a crise econômica, o negócio ganhou outro patamar e lhe possibilitou comprar uma casa e um carro. “Eu sustento o meu lar agora. Mantenho financeiramente meus pais, irmãos e uma tia”, diz.
Assim como Avilez, outras milhões de pessoas usam as criptomoedas em diferentes países da América Latina, um mercado em expansão diante da falta de políticas monetárias próprias, da alta inflação, da desvalorização das moedas locais e da alta taxa de informalidade, além da facilidade de acesso: em 2019, 68% dos latino-americanos tinham acesso à internet, segundo o Banco Mundial, enquanto apenas 18% tinham algum cartão de crédito, por exemplo.
“Acessar o mercado de criptomoedas e fazer transações é significativamente mais fácil do que o mercado tradicional. Se você tem internet e celular, você já tem acesso ao mercado. Em El Salvador, já tem mais gente com acesso ao app de criptomoedas do governo do que com contas bancárias”, afirma o diretor de expansão da Crypto.com para o Brasil, Guilherme Sacamone.
Moeda Oficial
Sem política monetária própria e dependente do dólar, o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, anunciou o bitcoin como moeda oficial, em setembro, apesar da advertência do FMI dos riscos envolvidos. “O que chama a atenção no caso é que o presidente fez um discurso de mudar paradigmas e digitalização da economia e quer ocupar o espaço de operador da criptomoeda sem pedir registro de recurso. Bukele distribuiu US$ 30 em criptomoeda por cidadão, para encorajar o uso do sistema”, disse o professor de geoeconomia internacional da ESPM-SP Leonardo Trevisan.
Recentemente, o presidente salvadorenho anunciou a compra de 100 bitcoins, com os quais teria gastado cerca de US$ 5 milhões. Bukele anunciou ainda a construção da primeira cidade bitcoin do mundo, em Conchagua, utilizando a energia geotérmica de vulcões. Mas, mesmo assim, El Salvador ainda não passa a Venezuela, terceiro país do mundo com maior incidência de criptomoedas, atrás apenas de Ucrânia e Rússia.
“Nós, venezuelanos, começamos a usar as criptomoedas entre 2015 e 2016, quando a crise começou a piorar. A necessidade nos obrigou a procurar métodos alternativos para enviar e receber dinheiro dentro e fora do país. O bitcoin foi o grande salvador dos venezuelanos”, conta Avilez.
Movimentação
Em 2020, os países latino-americanos enviaram US$ 25 bilhões em criptomoedas e receberam US$24 bilhões, o que representa 9% de todas as criptomoedas do mundo. A Venezuela representa US$ 3 bilhões desse valor.
O país, com inflação projetada de 1.600%, segundo a Ecoanalítica, já cortou 14 zeros de sua moeda, o bolívar, desde 2008. Apenas em 2021, o governo anunciou o corte de seis zeros. Com isso, o dinheiro perdeu valor e o venezuelano comum precisa recorrer ao dólar ou às criptomoedas.
“Com as criptomoedas, o governo não consegue imprimir quanto de dinheiro quiser e isso dribla a inflação. A emissão de criptomoedas não está sob a jurisdição de nenhuma instituição e isso faz com que ela seja um pouco mais confiável, porque o que define é a tecnologia, que não permite que interesses particulares definam a emissão. Isso se mostra mais confiável para as pessoas”, afirma Sacamone.
E foi justamente isso que tirou Avilez da pobreza nos últimos anos. O jovem de 35 anos é mais conhecido como Etinen, nome que usa para as transações que faz com o videogame Tibia. “Basicamente, nossa economia tem base em criptomoedas. Eu uso para vender os jogos e para proteger minhas finanças, afinal temos a maior inflação do mundo e o valor do câmbio bolívar-dólar é muito volátil”, conta.
Com o que recebe vendendo o Tibia, Avilez consegue comprar comida, pagar contas e até comprar eletrodomésticos. “Já comprei comida em um mercado de Caracas que se chama Excélsior Gama, aceitaram meus USDT. Também comprei comida pelo delivery e até bilhetes aéreos”. Uma assinatura mensal do Tibia vale 11 USDT.
Na Colômbia, o governo revogou qualquer limite em criptomoedas com registro e o uso de criptomoedas chegou aos caixas eletrônicos. O país tem a maior rede de caixas eletrônicos de criptomoedas – atualmente são 60 Coin ATM Radar, que permitem a troca direta de uma moeda, seja física ou de uma conta bancária, e qualquer criptomoeda.
“É preciso fazer um alerta. O país não tem uma economia que justifique a movimentação de tanta criptomoeda e isso acende um alerta na DEA”, explica Trevisan. Segundo a agência antidrogas dos EUA, “a criptomoeda favorece a lavagem de recursos ilícitos em razão do anonimato e da velocidade das transações”.
Fator importante para levar as classes mais simples da Colômbia a adotarem a criptomoeda em atividades cotidianas está a alta informalidade. Em 2020, ao menos 32,1% da população estava em trabalhos informais. Além disso, é preciso considerar que no país vive a maior comunidade de venezuelanos que fugiram da crise.
“Uma das vantagens da criptomoeda são as baixas taxas bancárias. A informalidade do trabalho na América Latina é muito alta e boa parte das pessoas depende dos recursos do imigrante. As classes D e E, por exemplo, precisam da criptomoeda para fazer a transferência de renda”, afirma Trevisan.
Os imigrantes latinos que continuam vivendo nos EUA ou em países da Europa, por exemplo, ou mesmo em outros países latino-americanos, mandaram mais dinheiro a seus parentes durante a pandemia de covid-19 e tentam escapar das altas taxas dos bancos. “A transação em criptomoeda é como um Pix, é um movimento livre”, disse Trevisan.
Remessas
Em junho de 2020, a República Dominicana recebeu 26% a mais de remessas do que no mesmo período de 2019. Em El Salvador, o aumento foi de 10%. De acordo com o Banco Mundial, em toda a América Latina, a receita das remessas representa quase 2% do PIB total da região.
Estima-se que existam 6 milhões de refugiados e migrantes venezuelanos em todo o mundo. Destes, 5 milhões estão na América Latina e no Caribe, principalmente em Colômbia, Brasil, Argentina, Equador, Peru e Chile. Avilez lembra que, apesar do grande êxodo de venezuelanos, muitos não têm condições de deixar o país e as remessas são a única forma de renda.
“Com a crise, muitos foram embora e começou a ocorrer aqui o que não era comum, as remessas. E, para os venezuelanos de fora conseguirem mandar dinheiro para cá, usavam cambistas informais. Agora, esses cambistas recebem em moedas locais (dos outros países), compram criptomoedas e as enviam para cá”, afirmou.
Atualmente, o bitcoin é a criptomoeda mais popular na América Latina. O México foi pioneiro na regulamentação do uso e nas operações de casas de câmbio digital, com sua Lei Fintech, de 2018. Já Equador e Bolívia baniram, em 2014, a circulação de criptomoedas em seus territórios.
No Brasil, o uso das criptomoedas está mais voltado para investimentos e ampliação de capital. “Percebemos diferentes modos de uso das criptomoedas em diferentes países, de acordo com cada necessidade. O Brasil é o primeiro país que a gente precisa estar presente em razão do tamanho do mercado, mas o volume ainda é concentrado em grandes transações, ou seja, em investidores que entendem do assunto”, disse Sacamone. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.