• Ailton Krenak quer corrigir ‘dano cultural’ com ‘O Guarani’

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  • 11/05/2023 08:01
    Por João Luiz Sampaio, especial para o Estadão / Estadão

    Não há meias palavras. “Peri é uma caricatura de índio ridícula, a que estamos sujeitos há 150 anos.” Assim o filósofo, líder indígena e escritor Ailton Krenak se refere ao personagem da ópera O Guarani, de Antônio Carlos Gomes. “Os povos originários se sentem ofendidos pela narrativa da ópera. E ela traz um dano cultural enorme por ter sido perpetuada acriticamente por tanto tempo”, completa.

    Foi com isso em mente que Krenak se aproximou do projeto de uma nova produção da ópera, que estreia nesta sexta-feira no Teatro Municipal de São Paulo. Ele assina a concepção da produção – a direção cênica e a reflexão sobre como levar essa discussão para o palco ficaram a cargo da diretora Cibele Forjaz. “O Guarani nos propõe esse tema relacionado à identidade, à relação com o outro”, ela explica.

    Quando subiu ao palco pela primeira vez em Milão, em 1870, O Guarani, baseado no romance de José de Alencar, foi um enorme sucesso. Pouco depois, no Brasil, impacto semelhante. O país enfim tinha uma ópera vista como essencialmente nacional, cujo herói era um dos personagens-símbolos da arte brasileira do século 19: o indígena.

    Mas o tempo passou. E o fato de a ópera “essencialmente nacional” ser cantada em italiano, em uma linguagem musical europeia – e retratar um indígena que desiste de suas crenças para ser aceito pelo colonizador português e se casar com a jovem Ceci -, começou a gerar certo desconforto já nas primeiras décadas do século 20, entre autores como Oswald de Andrade. “Carlos Gomes é horrível”, ele escreveu em um texto de 1922, meses antes da realização da Semana de Arte Moderna.

    Para Krenak, porém, a crítica modernista se resumiu “a piadinhas sem grande consequência”, sem que se fizesse uma discussão de fato a respeito da questão. “O Guarani… Não sei se o verbo existe, mas a obra ‘despessoa’ o sujeito e o transforma em uma figura mítica. E uma pessoa mitológica não precisa de comida, de terra, de vacina.”

    O filósofo acredita que sua concepção, na qual trabalhou com o artista Denilson Baniwa e com a dramaturgista Ligiana Costa, pode despertar incômodo no público mais conservador. “A ópera estará lá, todo o libreto, toda a música. Mas temos legitimidade para discuti-la e não faz sentido tentar nos desautorizar afirmando que se trata de uma obra consagrada.”

    GENOCÍDIO

    Cibele Forjaz acredita que, em O Guarani, o “sentido de integração nacional, de catequese, e o idílio amoroso entre Peri e Ceci servem como símbolo da formação de uma identidade na qual o invadido precisa se vestir da cultura do invasor”. “Essa integração é uma forma de genocídio e extermínio. Toda a luta do povo indígena nos últimos cem anos é o oposto disso, é o direito à diferença, a culturas vivas, que dialogam com o contemporâneo a partir de suas crenças, culturas e línguas”, explica a diretora.

    Para dar forma a essa ideia, Cibele trabalhou a noção do “duplo”. De um lado, está o cantor lírico interpretando Peri, cantando em italiano. E, de outro, estará o ator David Vera Popygua Ju, do povo guarani Mbya. Dele veio uma sugestão importante, conta Cibele: um guarani nunca está sozinho, como acontece na ópera. E a montagem ganhou então um grupo com músicos guaranis que estarão no palco.

    Os cenários vão evocar uma metáfora do Padre Antonio Vieira, recuperada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro em O Mármore e a Murta. A rigidez do mármore está associada ao colonizador, enquanto a murta, a planta, está sempre em movimento. “Serão três planos”, explica Cibele. “A obra de arte, pois é importante que a força da ópera esteja íntegra. Uma pedreira de mármore. E, atrás da pedreira, a aldeia, que começa invisível, invisibilizada, e vai aparecendo ao longo da ópera, crescendo, até atravessar a pedreira”, conta a diretora.

    “Vamos criar arestas, encontros, desencontros, tensões a partir da beleza da ópera, da música. E pensar também como hoje é dominante a violência com relação à terra, o clima. Se não mudarmos nossa atitude, criamos nosso fim. E ouvir pensadores indígenas sobre o tema é ver como estão avançados. Eles mostram que não há separação entre cultura e mundo natural, entre nós e a natureza.”

    Dois elencos vão se dividir na produção. Nos dias 12, 14, 17 e 20, Peri será vivido pelo tenor Atalla Ayan; Ceci, por Nadine Koutcher; Gonzales, por Rodrigo Esteves. E, nos dias 13, 16 e 19, assumem os papéis Enrique Bravo, Debora Faustino e David Marcondes. Em todas as récitas, Licio Bruno interpreta o Cacique. A regência e direção musical é de Roberto Minczuk.

    O Guarani

    Teatro Municipal

    Praça Ramos de Azevedo, s/nº

    6ª (12/5), 3ª (16/5), 4ª (17/5) e 6ª (19/5), 20h. Sáb. (13/5), Dom. (14/5) e Sáb. (20/5), 17h. R$ 12 / R$ 158

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