• A voz da consciência

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  • 13/11/2022 08:00
    Por Ataualpa Filho

    Tenho um problema que considero um “trauma de infância”; mas, dele não quero me desvencilhar. É um espinho cravado na carne que me faz bem. Digo “trauma de infância”, porque lembro quando e como começou. Confesso que a minha maneira de encarar os problemas que a vida nos oferece tem, na sua essência, as consequências do “trauma” a que me refiro.

    Acho que, por causa desse problema, entendi com facilidade o poema “O Morcego” de Augusto dos Anjos, principalmente a última estrofe: “A Consciência Humana é este morcego!/ Por mais que a gente faça, à noite, ele entra/ imperceptivelmente em nosso quarto!”

    Estou abordando esse assunto para atender a uma autocobrança efetuada em sonho: na noite de quarta para quinta-feira, sonhei que me sentia em falta com um amigo por não ter agradecido, em forma de crônica, a gentileza, a maneira atenciosa com que sempre me cumprimenta. Sei que ele trata a todos da mesma forma. Esse acolhimento gentil que ele dedica aos amigos é cativante. 

    Na manhã de sábado (05/11), entre amigos, a simplicidade dele ficou na berlinda. Lembrei-me do sonho que tive, por isso estou aqui em gesto de gratidão. É verdade que “gentileza gera gentileza”, mas isso só ocorre quando há humildade para reconhecer a necessidade da reciprocidade que deve ser efetuada quando somos tratados com respeito e dignidade.

    Nas primeiras horas da manhã de quinta-feira (03/11), em razão do sonho que tive, veio à lembrança cenas do filme espanhol que vi na infância “Marcelino Pão e Vinho”, baseado no livro de José María Sánchez Silva. Vi esse filme no período de preparação para a primeira comunhão, ou seja, estava entre sete a nove anos de idade. Há uma cena em que o menino Marcelino estabelece um diálogo com Cristo Crucificado. A professora de catecismo, em uma das aulas, havia explicado a questão da onipresença e a onisciência de Deus. 

    No sábado, véspera da minha primeira comunhão, a minha mãe havia feito um bolo para o café do domingo. Colocou-o em uma vasilha de alumínio com uma tampa dourada. E, para dificultar o acesso das crianças, pôs a referida vasilha em uma prateleira que havia na cozinha. Veja, a tentação da gula me acompanha há bastante tempo… 

    Seria fácil pegar um pedaço do bolo: subiria em uma cadeira, da cadeira para a mesa. E, de cima da mesa, pegaria a vasilha do bolo. Arquitetei o plano que, com rapidez poderia ser executado sem deixar vestígios. Mas, logo veio o que, para mim, foi a minha primeira reflexão sobre os meus atos: isso não é certo. E saltou a frase dita pela professora de catecismo: “Deus vê tudo.” 

    O não mentir é herança do meu pai. Mas os sonhos, os pesadelos, o incômodo na consciência por uma atitude incorreta já são frutos de um processo de vivência que me exige um “autoatentimento”. Em outras palavras, hoje cordialmente ouço os discursos doutrinários sem sofrer abalo na “passarinha”, pois a minha consciência fala mais alto, seja de forma consciente ou inconsciente. Para mim, é mais fácil assumir os erros do que inventar desculpas. Não sei tapar sol com peneira.

    No sonho que mencionei, a minha consciência foi movida por um gesto que o amigo fez de forma natural na porta de um banco. Após ficar quase duas horas em uma fila para falar com o gerente da agência bancária naquele período das restrições provocadas pela Covid-19, saí pior do que quando entrei…

    – Oi! Professor!  –  esse “oi” me recolocou no mundo dos vivos. Veio de uma pessoa por quem tenho grande admiração, pelo ser humano que é, pelo trabalho profissional que executa. 

    Fui cobrado no sonho, porque não disse a ele a importância daquela tensão quebrada. Eu não o vi na fila. A voz, mesmo atrás da máscara, era inconfundível. O olhar profundo de quem enxerga as pessoas por dentro, de quem capta da realidade a matéria-prima do seu trabalho, estava ali atento ao caos…

    Certifiquei-me, mais uma vez, que não podemos perder a oportunidade de expressar a nossa gratidão até mesmo nos momentos mais difíceis de nossas vidas. No momento em que ouvi o cumprimento dele, fiquei feliz. Mas ainda não havia dito a ele o quanto aquele cumprimento foi importante. Já tivemos em outros momentos juntos, mas não havia dito nada a ele. 

    A voz da consciência precisa ser ouvida. Por ter esse compromisso, com o tempo, aprendi a filtrar o que ouço. Não dou importância às doutrinações tóxicas. A ternura, a gentileza, a tolerância, o companheirismo, o carinho são as vertentes que levam a uma convivência pacífica consigo e com o próximo, ou seja, o bem comum começa dentro de nós.      

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