• A teologia do domínio: refutação de uma falácia

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  • 17/mar 08:00
    Por Leonardo Boff

    Está sendo discutido entre analistas políticos a passagem, no seio de grupos neopentecostais, em grande parte bolsonaristas, da teologia da prosperidade para a teologia do domínio. Estimo que o atual conflito entre o Estado sionista de Israel e a Faixa de Gaza com características de carnificina e até de genocídio de palestinos tenha reforçado no Brasil esta passagem. Sabe-se já há muito tempo que Benjamin Netanyahu é um sionista radical de extrema direita que expressou seu projeto de restaurar Isarel nas dimensões que possuía, no seu auge, no tempo de Davi e de Salomão. Daí seu apoio irrestrito de expulsão e colonização de territórios da Cisjordânia, de população árabe muçulmana.

    A teologia do domínio ou o dominionismo nasceu nos EUA, por volta dos anos 70, num contexto do reconstrucionismo cristão calvinista. Como é sabido, Calvino no século XVI instaurara em Genebra um governo religioso extremamente rigoroso e violento até com pena de morte. Seria um modelo para o mundo todo.

    O dominionismo agrupa várias tendências cristãs fundamentalistas, inclusive integralistas católicos que postulam uma política exclusivamente religiosa, de base bíblica, a ser aplicada em toda a humanidade com a exclusão de qualquer outra expressão, tida como falsa e por isso sem direito de existir. É a ideologia totalizadora central para a direita cristã no campo da política e dos costumes.

    Vejamos qual é a base bíblica fundamental que sustenta esta teologia. Baseia-se no capítulo primeiro do Gênesis. Na verdade há duas versões no Gênesis da criação. Mas é aproveitada apenas a primeira que se refere diretamente ao domínio. Eis o texto:

    “Deus disse: façamos o homem à nossa imagem e semelhança para que domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos e todos os animais selvagens e todos os répteis que se arrastam sobre a terra. Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus os criou, macho e fêmea os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a subjugai a terra, sobre as aves do céu e sobre tudo que vive se move sobre a terra”(Gênesis 1, 26-29).

    Esse texto assim como está legitima todo tipo de dominação e serviu aos desenvolvimentistas de argumento para o seu projeto de crescimento ilimitado.

    Entretanto, ele foi lido de forma fundamentalista e literalista, sem tomar em conta que entre nós hoje e o relato bíblico distam pelo menos 3-4 mil anos. O sentido das palavras mudam. Esses grupos não consideram o que elas significavam na época em que foram escritas há milhares de anos. Desvendamos seu significado em hebraico. Veremos que o texto, interpretado hermeneuticamente como deve ser, mostra a falácia da teologia do domínio. Ela representa um delírio paranóico, irrealizável na fase do mundo plural e globalizado no qual nos encontramos.

    O texto deve ser interpretado na ótica da afirmação do ser humano criado “à imagem e semelhança de Deus”. Com esta expressão, não se quer em hebraico definir o que é o ser humano (sua natureza); ao contrário, se quer determinar o que ele, operativamente, deve fazer. Assim como Deus extraiu tudo do nada, deve o ser humano, criado criador, levar avante o que Deus criou com benevolência: “Deus viu que tudo era bom” (Gênesis 1, 25). O significado original em hebraico de “imagem e semelhança” (selem e demût) faz com que o ser humano seja o representante e o lugar tenente do Criador.

    As expressões “subjudar” e “dominar” devem ser entendidas, simplesmente, como “cultivar e cuidar”. Mas vamos aos detalhes. Para “dominar” usa a palavra hebraica radash (Gênesis 1, 26) que significa governar bem como o Criador governa sua criação. Para subjugar emprega em hebraico o termo kabash (Gênesis 1, 28), que significa agir como um rei bom, não dominador, que sabiamente olha para os seus súditos. Por isso o salmo 8 louva a Deus por ter criado o ser humano como rei:

    Tu o fizeste um pouco inferir a um ser divino, tu o coroaste de glória e honra, deste-lhe o domínio (kabash) sobre as obras de tuas mãos, tudo submeteste (radah) a seus pés; as ovelhas e todos os bois e até os animais selvagens, as aves do céu e os peixes do mar, tudo o que abre caminho pelo mar” (Salmo 8, 6-9).

    Aqui, como no Gênesis 1, não há nada de violência e dominação: há que se agir como o Criador que age com amor a ponto de Ele dizer no livro de Sabedoria que “criou todos os seres com amor e nenhum com ódio senão não os haveria criado… porque Ele é o apaixonado amante da vida” (Sabedoria 1, 24.26). Aqui se esvai a base para qualquer teologia do domínio.

    Há a segunda versão do Gênesis (2, 4-25) que diverge da primeira, nunca referida pelos representantes da teologia do domínio. Nesta segunda, Deus tira todos os seres do pó da terra, também o ser humano, estabelecendo com isso um laço de profunda irmandade entre todos. Criou o homem que vivia em solidão. Deu-lhe, então, uma mulher, não para procriar, mas ser sua companheira (Gênesis 2, 23). Colocou-os no Jardim do Éden, não para dominá-lo mas para “cultivá-lo e guardá-lo” (2, 15), usando as palavras hebraicas abad para arar-cultivar e shamar para guardar ou cuidar.

    Essa compreensão que coloca todos os seres tirados da mesma origem, do pó da terra, e confiando ao casal humano a missão de cultivar e guardar, forneceria outro tipo de fundamento para a convivência entre todos os seres humanos junto com os demais seres da natureza. Aqui não existe base nenhuma para o domínio, ao contrário, negá-lo em favor de uma convivência harmoniosa entre todos.

    Essa análise, à base do hebraico, é decisiva para tirar o tapete de uma interpretação, fora do tempo, fundamentalista, a serviço de um sentido político, totalitário e excludente de domínio sobre os povos e a Terra, como sendo o projeto de Deus. Nada mais distorcido e falso. Por mais que o fundamentalismo e a orientação de extrema direita em política esteja crescendo no mundo, esta tendência não oferece as condições objetivas reais para prevalecer e constituir uma única forma religosa de organizar a política da humanidade una e diversa.

    **Sobre o autor: Leonardo Boff, professor de teologia sistemática com acento na teologia bíblica. Veja algumas fontes entre tantas: Aubrey Rose (org.) Judaism and Ecology. N.York 1992; Ronald A.Simkins, Criador e Criação: a natureza da mundividência do Antigo Israel, Vozes1994 pp.158-160; James B.Martin-Schramm&Robert L.Stivers, Christian environmental Ethics. N.York 2003 esp.pp. 102-104; von Rad. Das erste Buch Mose, Genesis,Göttingen 1967.

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