• A sedução de um vira-lata

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  • 04/06/2023 08:00
    Por Ataualpa A.P. Filho

    Quem vive assim a serviço da crônica, procurando fatos do cotidiano para ampliar as reflexões sobre o viver, afia os sentidos na dura pedra da realidade. Se não a fura como a água que tanto bate, pelo menos, move o olhar dos leitores para cenas pitorescas, despretensiosas que não chegam às manchetes de jornais. 

    Aqui lhe peço um pouco de paciência diante de alguns entretantos: a Literatura é que garante o meu pão de cada dia. Por isso que a tenho com muito respeito e carinho. Mas sempre me deparo com este dilema: dedicar-me ao estudo das produções literárias ou ficar a serviço do leitor, uma vez que, para mim, este é quem completa o ciclo do processo comunicativo que se faz por intermédio de uma obra de arte. 

    Quando narro um fato que mobiliza a minha atenção é com o propósito de compartilhar uma aprendizagem. Às vezes, o humor, o imprevisível, uma cena inusitada, uma atitude terna caem em nossas retinas e sentimos vontade de contar para alguém que estimamos. Essa é uma das razões que me leva a viver neste fio de navalha afiada, mas com pretensão de ferir ninguém. E, desde já, agradeço-lhe por essa atenção, por esse tempo compartilhado na prosa nossa de cada semana. 

    Na segunda-feira que passou, saí de casa com uma pequena folga no tempo. Parei na padaria que fica no caminho da escola e pedi um cafezinho só pela força do hábito. 

    Valorizo a cordialidade despretensiosa de um “bom dia”. O anonimato nos fornece essa informalidade capaz de criar laços de amizade. Várias pessoas participam da nossa rotina. Sempre gosto de demonstrar a minha gratidão pelos serviços que recebo: os porteiros do prédio, o trocador, o motorista de ônibus e táxi; os funcionários e funcionárias da padaria, do supermercado; o pessoal de apoio das escolas em que trabalho; os jornaleiros. Em síntese, gosto de manter um vínculo de respeito mútuo com quem está presente no meu dia a dia. Sou eternamente grato a essas pessoas que fazem parte da minha rotina.

    E, na segunda-feira que mencionei, quando estava parado com os olhos no relógio e pensando no que teria que fazer durante o dia, enquanto tomava os goles de café, uma garota com a idade em torno de uns 12 anos, com uniforme de um colégio particular, aproximou-se do balcão e dirigiu-se ao senhor que estava no atendimento:

    – Quanto é uma coxinha?

    – Seis e noventa.

    – Fala sério! – Exclamou em uma reação de espanto. 

    Pela reação, vi que ela se assustou com o preço. 

    – Quanto é mesmo?

    – Seis e noventa. 

    – Me dá uma…

    – Você quer uma pra levar ou vai comer agora?…

    – Não, é pro cachorro…

    Enquanto o senhor pegava a coxinha, ela se dirigiu ao cãozinho que estava na calçada. Trata-se de um vira-lata de cor caramelada. Pareciam velhos amigos que não se encontravam há muito tempo. E, por acaso, depararam-se em um encontro casual. A alegria do cachorro era impressionante. Pulava, balançava a calda, não ficava quieto um instante. 

    Acredito que, ao sair de casa em direção à escola, ela o encontrou no meio do caminho. Ele passou a segui-la. A atenção que ela deu a ele logo se transformou em uma amizade refletida na reciprocidade das manifestações de carinho. Os dois demonstravam uma alegria transbordante a ponto dela querer agradá-lo com uma coxinha de seis e noventa, que lhe parecia muito cara. Mas, mesmo assim, ela pagou. Pegou a coxinha, deu-lhe na boca. Ele a colocou no chão. Porém não demonstrou nenhum entusiasmo diante do alimento doado com tanto carinho. 

    Ele cheirava, olhava para ela, comia um pedaço. Cheirava, comia um pedaço, olhava para ela. Parecia que ele se sentia na obrigação de comer algo que não queria. Ela ficou olhando as reações dele que não se mostrou muito atraído pelo alimento oferecido. A fome dele era mais de atenção, de carinho. O certo é que ela ficou comovida pelas manifestações de afeto do cãozinho. Quis agradá-lo com um alimento, pois deduzira que ele estivesse faminto, na rua sem abrigo.

    O meu tempo para o cafezinho se esgotou. Não deu para acompanhar o desfecho daquela cena. Segui o meu caminho em direção à escola. Mas fiquei pensando que os seis e noventa que ela pagou pela coxinha foram subtraídos do dinheiro que teria para comprar o lanche na cantina da escola no horário do recreio. Sei que esse pensamento é apenas uma hipótese sobre o que realmente possa ter movido o sentimento daquela garota diante de um cãozinho. 

    Posiciono-me diante desse fato apenas para dizer o que já é do conhecimento de todos: “gentileza gera gentileza”. E não medimos esforços para ajudar a quem nos cativa…

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