• A saudade da sociedade alternativa

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  • 06/06/2021 08:00
    Por Ataualpa Filho

    Tenho me divertido com histórias que ouço, envolvendoaplicativos e redes sociais em monitoramentos conjugais.Para ilustrar, conto-lhe um caso que aconteceu com um amigo que sempre apresentadesculpas em casa pelo que apronta. Até já servi de álibi em algumas situações. O bom é que, antes de me envolver, ele me avisa:

    – Olha, hoje nós saímos e fomos ao Horto de Itaipava. Se a minha mulher te ligar ou passar uma mensagem, você confirma que estamos juntos…

     Nesse dia, dez minutos depois que li a mensagem, recebi outra mensagem da mulher dele para dar um recado ao marido dela que não estava com comigo. E, nem eu sabia onde ele estava. Tive que passar outra mensagem para ele com o objetivo de saber o que poderia responder.

    Trata-se de um grande amigo, mas é muito enrolado, principalmente quando envolve relacionamento extraconjugal.

    Depois dessa enrascada que ele me colocou, fui tomar algumas satisfações:

    — Por que você me coloca nas suas trapalhadas? – Ele respondeu:

    — Porque minha mulher confia em você. Te acha um cara muito certinho. Quando falo no teu nome, ela não fica fazendo perguntas. Mas, se falo que saí com o M…, um amigo comum, a bronca vem na hora:

    — O que você anda fazendo com esse mulherengo?…

    E aqui falo a verdade, o mal desse amigo é que ele não sabe fugir dos assédios e não perde a oportunidade de viver uma aventura.Só que sempre leva a pior, todos acabam sabendo o que ele apronta. Arma e se dá mal, não tem malícia, não se preocupa com a coerência das ficções que cria. Agora com o whatsapp, é monitorado pela mulher. Como não confia, sempre manda mensagem perguntando por onde ele anda. Uma vez, ela ligou do telefone fixo para o celular dele.  Mas ele não atendeu. Ela pegou o celular e viuque ele estava on-line, logo fez a típica pergunta:

    – Onde vctá? – Ele, no impulso, escreveu: “na casa do M…”

    Ela, já enfurecida, bravejou: “commmoooo se lá não tem sinal?” 

    Ele esqueceu que, na casa do M…, não há sinal da operadora de celular que ele usa.

    Outro colega foi flagrado na saída do motel pela esposa. Foi rastreado pelo celular. Ela também já desconfiava da traição.Desse fato, não exponho detalhes…

    Eu sou um cidadão analógico, não tenho inveja de quem se acha digital. Ainda sonho com uma casa no campo, “onde eu possa plantar meus amigos,/ meus discos e livros e nada mais”…

    Sou da geração “bicho grilo”, que cantava “Travessia”, “Canteiros”, que sonhava conhecer “Lumiar”, ouvia “Clube da Esquina” e pensava em andar descalço pelas ruas de Mauá. Mas sempre que podia, ia mesmo era para Teresina. Até hoje desejo ir a São Tomé das Letras, ainda não a conheço.

    Um sonho, realizei ainda jovem: andei feito índio no Delta do Parnaíba. Outro sonho realizei já adulto: andei pelos sertões dos gerais descrito por Guimarães Rosa, no livro “Grande Sertão: Veredas”. Tive a honra de almoçar na casa de Manuelzão, comi um frango com quiabo que jamais esquecerei. Colhi o autógrafo dele em “Manuelzão e Miguilim”.

    Na minha juventude; todas as saudades, eu consumia nas Pedras do Arpoador, no Rio; vendo o Sol se pôr. Nos fins de semana, quando era vencido pela saudade, pegava o 474, ia para feira de São Cristóvão, ouvir Azulão, Zé da Onça e os cantadores de cordel.

    Não lembro quantas vezes vi “DersuUzala”, “O Enigma de KasparHauser”, “Muito Além do Jardim” (baseado no livro “O Videota”, de JerzyKosinski).

    Fiz esse pequeno relato para falar da minha dificuldade em adaptar-me a este mundo digital que a pandemia nos colocou. Não ver o sorriso dos alunos atrás das máscaras nas aulas híbridas ainda é muito estranho. Sou do tempo do giz e do quadro negro. Hoje, diante das videoconferências, sinto uma inabilidade para manter a comunicação informal com o propósito de melhor assimilar as dúvidas inerentes ao processo de aprendizagem, principalmente com os alunos da rede pública.

    Este “novo normal” é bem diferente da “sociedade alternativa” que cantávamos em prosa e verso. Mas ainda não perdi o hábito de querer ouvir o canto dos pássaros.         

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