• A República de costas para a população

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  • 07/05/2022 09:21
    Por Gastão Reis

    André Breton, autor do Manifesto Surrealista (1924), dizia que a primazia da racionalidade deveria ceder lugar a um mundo em que sonho e realidade, delírio e lucidez se confundissem. A visão artística de padrões estéticos é bastante elástica. A realidade, na linha de fatos e versões, tem parentesco com essa flexibilidade. Mas tem limites. O que assusta no atual cenário brasileiro é a insistência de certos atores em elevar o teor alcoólico do real. O non sense parece ter tomado contra da vida nacional e até da internacional.

    A ONU, não obstante o drama ucraniano merecer sua máxima atenção, resolveu deitar falação sobre a condenação de Lula. Seu Comitê de Direitos Humanos, instado pelos advogados de Lula, afirmou que “o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, atuou com parcialidade no julgamento do ex-presidente Lula no âmbito da Operação Lava-Jato”.

    A resposta de Moro foi curta e grossa, e lúcida: “O ex-presidente Lula nunca foi perseguido pela Justiça. Ele foi condenado por 9 magistrados, eu em primeira instância, três no tribunal de Porto Alegre e cinco no STJ”. Haveria, segundo o Comitê da ONU, um complô jurídico para condenar Lula, descoberto tardiamente, anos depois, pelo ministro Edson Fachin. O local correto para o processo deveria ter sido Brasília, e não Curitiba. O ministro Fux, por sua vez, em evento recente, afirmou: “Sem imprensa livre, democracia é uma mentira”. No fundo, ele sabe que isso não basta. Poderia ter posto a dedo na ferida: a ausência de quase um século do voto distrital puro (ou equivalente) e do recall.

    No caso Lula, o sofá continua na sala, como ´prova ocular do crime, nos relembra o articulista de O Globo Carlos Sardenberg. Que houve roubalheira grossa não há dúvida. A devolução dos US$ 100 milhões roubados da Petro-brás são a prova gritante do crime. E Lula foi o responsável por indicar a patota que comandou o processo. Como surrupiar tanto dinheiro à revelia do chefão? O marido enganado, no caso, foi o povo brasileiro.

    Não satisfeito, o ministro Fachin nos informa que a constituição brasileira não contempla, é fato, o instituto do poder moderador, como era até 1889. Dito assim, parece até que foi enterrado em todo o planeta. Na verdade, sobrevive em toda a Europa, nos países de língua inglesa e em outros países nada surrealistas. O Chefe de Estado, presidente eleito ou um monarca, não se confunde com o de Chefe do Executivo, exercido pelo Primeiro-Ministro. São dois poderes distintos.

    Essa ideia de poderes harmônicos e independente não passa de uma história da carochinha latino-americana. A constituição portuguesa, por exemplo, afirma, com lucidez, que os poderes são interdependentes. O Chefe de Estado é a figura que age nos conflitos entre os poderes, que nós não temos mais. Ele atua como árbitro para evitar situações como a nossa em que o país parece nau sem rumo.

    O STF vem sofrendo um processo de profundo desgaste junto à opinião pública em que apenas 15% da população diz confiar muito nele, segundo pesquisa do Datafolha; outros 44% confiam um pouco, o que equivale dizer que desconfiam muito. No artigo anterior, eu havia mencionado a pesquisa que nos revelou o fato de que o QI do brasileiro havia batido em 87 pontos, o limite da deficiência intelectual. A despeito do descaso secular da república com uma educação pública de qualidade, o povo brasileiro tem QI suficiente para desconfiar daqueles que querem rir em nossa cara com decisões estapafúrdias.

    O simples fato de o Lula poder se candidatar à presidência, sem mencionar sua eventual vitória na eleição de outubro, é um desrespeito ao povo brasileiro, que vem percebendo o conto do vigário que querem lhe passar. Mais do pior!

    Os últimos eventos do dia 1º de Maio foram sintomáticos do estado de espírito do eleitor brasileiro. Os comícios esvaziados de Lula e de Bolsonaro no Dia do Trabalhador, bem mais do primeiro do que do segundo, evidenciam uma reação de decepção em que a população dá as costas aos políticos. Lula vem evitando aparecer em eventos abertos receoso da reação popular. Neste último, empurrou a hora de seu discurso por mais de duas horas na vã esperança de que o local agregasse um público maior. E nada.

    Ainda me lembro bem de um evento anual da HSM, em São Paulo, a que compareci, em que um dos palestrantes era o ex-ministro Delfim Netto. Referindo-se à primeira década do novo milênio em que a economia mundial ia a todo vapor, de repente,parou e comentou: “Mas o Lula pensa que foi ele!”. As perspectivas para os próximos anos em matéria de crescimento não são boas. Pior ainda para o Brasil que vem demonstrando uma incapacidade crônica de colocar a casa em ordem para deslanchar um processo de desenvolvimento sustentado longo e estável. Nada parecido com a primeira década do século 21.

    A sequência de governadores fluminenses que pareciam estar participando de uma corrida para ver quem era o pior, ou o mais corrupto, não foi um fenômeno apenas do estado do Rio de Janeiro. Na verdade, desde 1985, a coleção de políticos que ocuparam a presidência não foi muito diferente, excetuando FHC com o Plano Real, que enterrou décadas de vigência do imposto inflacionário, aquele que machuca mais a população mais pobre.

    As críticas à passividade da população são injustas. Em passado recente, ela foi às ruas, e a Dilma acabou sendo defenestrada, como o Collor foi. A paralisia se deu, em boa medida, devido às restrições impostas pela Covid-19. Foram as artimanhas do imponderável que pesaram na balança. A boa notícia é que a reação começa a se esboçar, e vai entrar na ordem do dia.

    A população vem se dando conta de que vive numa república sem compromisso com a res publica, vale dizer, o bem comum. Tais momentos da História ensejam mudanças profundas. Que assim seja!

    (Que o Dia das Mães, cara leitora, lhe seja pleno de reconhecimento e amor pelo presente da Vida a filhos e filhas. Um abraço na forma de parênteses.)

    (*) Vídeo do autor, “O que a VEJA não viu”, no DOIS MINUTOS COM GASTÃO REIS. Complementa o artigo acima. Basta clicar no link abaixo para assistir

    https://www.youtube.com/watch?v=qS3-k352Ktc&t=56s

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