A raiz última da crise ecológica: a ruptura da matriz relacional
Há muitas causas que levaram à atual crise ecológica. Mas temos que chegar à última: a ruptura permanente da re-ligação básica com a criação e com isso com o Criador. Chamamos isso de ruptura da matriz relacional.
Tocamos aqui numa dimensão profundamente misteriosa e trágica da história humana. A tradição judaico-cristã a chama de pecado do mundo e a teologia no seguimento de Santo Agostinho que inventou esta expressão, de pecado original ou queda original. O original aqui não diz respeito à origem temporal, portanto, ao ontem. Mas ao hoje, ao que é originário no ser humano e que lesa o fundamento de sua condição humana atual.
Pecado não é uma mera dimensão moral ou um ato falho. Trata-se de uma atitude globalizadora, portanto, de uma subversão de todas as relações, uma dimensão ontológica que a totalidade do ser humano, entendido como um nó de relações. Esse nó se encontra distorcido e viciado, rompendo a matriz relacional com toda a criação e com o Criador.
Como entender este desvio relacional? Sem entrar nas muitas possíveis interpretações, assumimos uma, pois ganha mais e mais o consenso dos pensadores religiosos: a imperfeição como momento do processo evolucionário. Deus não criou o universo pronto uma vez por todas, um acontecimento passado, rotundamente perfeito. O que ele fez foi deslanchar um processo em aberto e perfectível que fará uma caminhada rumo a formas cada vez mais complexas, sutis e perfeitas. Esperamos que um dia chegará a seu ponto Ômega.
A imperfeição não é um defeito, mas uma marca da evolução. Ela não traduz o desígnio último de Deus sobre sua criação, mas um momento dentro de um imenso processo em ascensão. O paraíso terrestre não significa saudade de uma idade de ouro perdida, mas a promessa de um futuro que ainda virá. A primeira página das Escrituras, na verdade, é a última. Ela representa uma espécie de profecia, de maquete do futuro, para que os leitores/as se encham de esperança acerca do fim bom de toda a criação.
São Paulo via a condição decaída da criação como um submetimento “à vaidade” (mataiótes), não por causa do ser humano, mas por causa de Deus mesmo. O sentido exegético de “vaidade” aponta para o processo de amadurecimento. A natureza não alcançou ainda sua maturidade. Por isso, na fase atual, ela se encontra ainda longe da meta a ser alcançada. Daí que a “criação inteira geme até o presente e sofre dores de parto”( Rm 8,22). O ser humano participa deste processo de amadurecimento, gemendo também (Rm 8,23). A criação inteira espera ansiosa pelo pleno amadurecimento dos filhos e filhas de Deus. Pois entre eles e o resto da criação vigora uma profunda interdependência. Como enfatiza o Papa Francisco na encíclica Laudato SÌ: como cuidar da Casa Comum: ”tudo está relacionado e todos nós caminhamos unidos com terna afeição ao irmão Sol, à irmã Lua, ao irmão rio e à Mãe Terra” (n. 92). Realizar esta relação nos faz participar, como diz Paulo, ” da gloriosa liberdade dos filhos e filhas de Deus” (Cf. Rm 8, 20). Acercamo-nos do desígnio terminal de Deus. Somente então Deus poderá proferir a esperada palavra: “e viu que tudo era muito bom”.
Por ora, estas palavras são profecias e promessas para o futuro, porque nem tudo é bom. Bem disse o filósofo Ernst Bloch, o do princípio esperança: “o gênesis está no fim e não no começo”. O atraso do ser humano no seu amadurecimento implica no atraso da criação. Seu avanço implica um avanço da totalidade. Ele pode ser um instrumento de libertação ou de emperramento do processo evolucionário.
É aqui que reside o drama: evolução quando chega ao nível humano, alcança o patamar da consciência e da liberdade. O ser humano foi criado criador. Pode intervir na natureza para o bem, cuidando dela, ou para o mal, devastando-a. Já se disse que inauguramos uma nova era geológica: o antropoceno. Significa: quem ameaça a vida no planeta é o ser humano. De anjo do bem, fez-se o Satã da Terra. No começo podia ser apenas um ato. Mas a repetição criou uma atitude de falta de cuidado. Ela foi crescendo até tornar-se nos dias atuais uma ameaça planetária.
Com isso rompeu com a matriz relacional com todos os seres. Colocou-se no lugar de Deus. Sentiu-se pela força da inteligência e da vontade um pequeno “deus” que tudo pode.
Esta é a grande ruptura com a natureza e com o Criador que subjaz à crise ecológica. O problema está no tipo de ser humano que se forjou ao longo da história, deixando de completar a criação e pondo-se a explorá-la de forma destrutiva para o benefício de alguns.
A cura reside na re-ligação com todas as coisas. Isso não implica ser mais religioso, mas sim mais espiritual e respeitoso em relação à herança sagrada que o Universo e Deus nos entregaram. Precisamos voltar à Terra da qual nos exilamos e sentirmo-nos o seu guardião e cuidador. Então será refeito o contrato natural e matriz relacional. O efeito é a paz com a criação e com o Criador, base de nossa discreta felicidade terrenal.
Leonardo Boff escreveu Opção Terra: a solução para a Terra não cai do céu, Record, Rio 2009; Habita a Terra: qual é o caminho para a fraternidade universal, Vozes 2021.