A questão militar ainda hoje: Contrapontos
Merval Pereira, em dois artigos recentes no jornal O Globo, um no domingo (3.1.2021), “A ‘bolsonarização’ dos quartéis”, e outro, na terça-feira (5.1.2021), “Ainda a questão militar”, aborda essa vetusta e persistente presença dos militares na política surgida no final do Império. Cita o estudo, de autoria do especialista, Prof. Adriano de Freixo, do Inest-UFF, “Os militares e o governo Bolsonaro, entre o anticomunismo e a busca do protagonismo”. O primeiro contraponto é no sentido de que a busca do protagonismo nasceu bem antes do anticomunismo com o jornal O Militar, de 1850. E com a ideia da ditadura científica de Comte acariciada por militares e civis,exitosa com o golpe de 1889.
Freixo toca em três pontos importantes. O primeiro é o que chamou de ‘bolsonarização’ dos estratos inferiores da corporação ainda que sem risco de quebra de hierarquia no futuro próximo. O segundo ponto se refere ao mesmo processo ocorrendo nas polícias (PMs) estaduais “definidas pela constituição como forças auxiliares e reservas do Exército”. Por fim, o mais preocupante é a “simbiose que existe em diversos estados da Federação entre parte das corporações policiais e forças parapoliciais, as chamadas milícias”. Na verdade, são problemas não resolvidos há décadas, e que vêm-se agravando em tempos mais recentes sem que as autoridades civis se disponham a enfrentá-los. Aqui inclusa a sociedade civil no exercício efetivo de sua cidadania e soberania.
No artigo publicado dois dias depois, Merval Pereira aborda as iniciativas de Raul Jungmann, ministro da Defesa de Temer, que coloca o dedo na ferida, ao afirmar que o problema maior “é o alheamento/alienação do poder político e da elite civil das suas responsabilidades com a defesa nacional, e de liderar os militares”, que é “uma questão nacional e democrática central”. Jungmann fez a defesa dessa linha de atuação em artigo publicado na revista “Política Democrática Online”, do Instituto Astrogildo Pereira, do Cidadania.
Um segundo contraponto é que essa atitude apática não ocorria no Império, em que as pastas militares eram normalmente ocupadas por civis. Não só isso. Havia, na Câmara dos Deputados, uma comissão permanente que comandava os orçamentos militares e acompanhava sua execução. Ela era sempre composta por civis preocupados em impedir que o Brasil descambasse para o que já ocorria na América Hispânica no século XIX em que o poder civil foi eclipsado pelo militar, caminho certo para golpes, ditaduras e indisciplina.
Merval nos relata que o presidente Temer enviou, em novembro de 2016, ao Congresso Nacional a “Política e a Estratégia Nacional de Defesa e o Livro Branco da Defesa Nacional”, cuja coordenação coube ao próprio Jungmann, então ministro da Defesa. Dois anos depois, em 18 de dezembro de 2018, o senador Eunício Oliveira, presidente do Congresso, enviou os textos à presi-dência de República para sanção. Temer preferiu deixá-la para seu sucessor assinar. Infelizmente, acabou sem a sanção presidencial porque Bolsonaro entendeu que eram projetos do governo anterior. Mas, de fato, não interessava.
O mesmo Jungmann foi o relator da Lei Complementar 136. Merval o cita, nos dizendo que no seu bojo trazia uma novidade histórica: “Pela primeira vez, o Congresso Nacional (republicano, digo eu!) passaria a apreciar e, portanto, a ter controle das diretrizes, objetivos e rumos da defesa nacional – algo que não consta de nossa Constituição Federal”, ressaltava Jungmann.
Aqui vai um terceiro contraponto esquecido por Merval e pelo próprio Jungmann, que reflete o apagão de nossa memória histórica nacional do século XIX, mesmo entre pessoas bem informadas, que ambos, sem dúvida, são. José Murilo de Carvalho, o historiador que melhor conhece nosso século XIX, nos fala da verdadeira obsessão dos parlamentares do Império pelas questões orçamentárias e pelo acompanhamento do destino das verbas, dado o caráter impositivo do orçamento. Os valores orçados tinham que ser realizados. Logo, não foi novidade histórica alguma. Foi, sim, uma irresponsabilidade histórica dos parlamentares republicanos, que, aliás, nessa questão, vem desde 1889.
Ainda nesse segundo artigo, Merval nos relembra dos posicionamentos de Jungmann que abririam as portas para “um diálogo histórico entre o poder político e os militares, num claro avanço democrático”. Foi tudo em vão, segundo o ex-ministro. Ao longo de dois anos, os textos de 2016 só receberam emendas que não eram aprimoramentos dignos de nota, e não foram objeto de nenhuma (!) audiência pública. Um quarto contraponto é a lerdeza republicana em refazer o óbvio que já era praticado no Império. Por sua vez, os militares americanos, sabiamente, se mantiveram fiéis ao discurso de posse Jefferson, em 1801, em que ele afirma “a supremacia da autoridade civil sobre a militar”.
O Prof. Adriano de Freixo, com sobra de razões, nos relembra “a dificuldade (histórica, acrescento eu) das Forças Armadas para lidar com o controle civil sobre elas”. Hora de lembrar de Caxias e sua aversão ao golpismo. E a consciência dele de que “nós, soldados, somos péssimos políticos”. Ou de Nabuco, com argúcia ímpar, em carta, datada de 1895, ao Alte. Jaceguay: “A razão aconselhava que a dinastia e a força armada se entendessem, se unissem, reciprocamente se apoiassem, animadas como eram do mesmo espírito de abnegação e patriotismo. Em vez disso, infelizmente o exército preferiu destruir a sua aliada natural e começar a sua própria evolução política, perigosa sempre para instituições militares”. Mais um contraponto.
Por fim, o Prof. Freixo expõe três objetivos perseguidas por Bolsonaro: o revigoramento da ideologia anticomunista; o desejo, explicito ou implícito, de os militares retomarem o protagonismo e o prestígio perdidos; e as insatisfações ou demandas corporativas para manter ou ampliar privilégios. Na verdade, são três descaminhos que já se revelaram desastrosos no passado. O histórico da presença militar na política e na economia nos deixou um saldo muito negativo. O próprio ministro Guedes disse aos militares, corajosamente, que as estatais eram seus filhos drogados que retornavam à casa corrompidos e ineficientes. Até quando vamos insistir no erro? Este é o contraponto final.