• A questão da legitimidade: a República e a carta de 1988

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  • 19/out 08:00
    Por Gastão Reis

    Ainda me recordo bem de uma pergunta que me foi feita na porta de entrada do Departamento de Economia da Universidade da Pensilvânia, nos idos de 1979. Era um sábado, e a porta de vidro estava trancada. Um professor do departamento, que eu não conhecia, do lado de dentro, notou que eu queria entrar. E me perguntou de chofre: “Are you legitimate? (“Você é legítimo?”). Ele queria saber se eu era aluno do departamento. E respondi, com convicção: “Yes, Sir!” (Sim, senhor!). Ato contínuo, abriu-me a porta sem me pedir qualquer prova. Confiança.

    Teria sido mais simples me perguntar se eu era aluno. Por outro lado, reflete o valor dado pelos americanos à questão da legitimidade. Lembrei-me, depois, daquele fato histórico, bem conhecido, sobre um imposto criado pela Coroa inglesa que foi questionado pelos americanos com a famosa frase: “No taxation without representation.” Ou seja, “Imposto só com representação”. Os colonos americanos questionavam a legitimidade do governo inglês para lhes cobrar imposto sem consultá-los antes.

    Dado o enquadramento dos parágrafos anteriores, vejamos, em breve relato histórico, o que ocorreu conosco nesta questão da legitimidade. Tomemos a Carta de 1824, sempre criticada por ter sido outorgada. Mas, como sempre, sem fazer história comparativa. Ela foi elogiada por juristas ingleses, e foi a que mais durou até hoje em nossa história constitucional (65 anos). Por quê?

    A resposta não é complicada. Foi feita por um grupo de juristas qualificados, juntamente com a presença de D. Pedro I. Ela se esmerou em ser fiel à tradição de que Direito Constitucional não se confunde com Direito Comum, indevidamente misturados na Carta de 1988. O fun-damental foi ter preservado o interesse público. No cerne, a concepção do Poder Moderador, instrumento eficaz para controlar os desmandos do andar de cima, perdido em 1889. E jamais usado para oprimir o Povo.

    Foi nossa única constituição enviada às Câmaras Municipais para ser homologada por estas, uma preocupação de D. Pedro I para lhe dar legitimidade. E funcionou bastante bem, enquanto durou, na defesa do bem comum. Em 1889, com a república, nada parecido ocorreu. E teve início a triste tradição de mandar a conta para o Povo pagar sem ser consultado. E que se mantém até hoje. O Fundão Eleitoral, de 6 bilhões de reais, foi aprovado pelo Congresso sem ser ratificado pela população. Muito provavelmente, se consultada, optaria em destinar tal montanha de dinheiro para educação e saúde.

    Para piorar, o bilionário Fundo Partidário fez o mesmo, sem a consulta popular direta. A profunda desilusão da população com os políticos e com os partidos levou a uma crise de legitimidade em que os eleitores passaram a se recusar a contribuir espontaneamente para sua manutenção. E qual foi a solução? Criar o referido fundo partidário, obviamente, vale repetir, sem ser homologado pela população. Nada parecido ocorreu ao longo do Império dada a seriedade com que foram tratados os orçamentos públicos, sempre implementados à risca e monitorados em sua execução. O escrito era para valer.

    Tomemos, agora, o exemplo do Chile para fazer uso de história comparativa. Sem que eu tenha simpatia alguma por Pinochet, é fato que ele outorgou uma constituição feita por um seleto grupo de juristas. E sem meter o bedelho em assunto que desconhecia. Nos últimos anos, houve a eleição de um governo de esquerda, que resolveu propor uma nova constituição para o País. Foi na linha de prometer o paraíso na terra. Mas teve a dignidade de consultar a população que a rejeitou. Um novo texto, menos alucinado, foi proposto ao povo, que o rejeitou novamente.        

    Restou a pergunta: por que o povo preferiu manter a constituição outorgada por Pinochet? Simplesmente porque foi a que deu ao País estabilidade e condições de crescer nas últimas décadas acima de qualquer outro país latino-americano. O Chile tem hoje uma renda per capita, medida pelo PPC (paridade do poder de compra), de cerca de 24 mil dólares, enquanto nós patinamos no patamar de 10 mil. E perdendo posição relativa em relação aos demais países.

    Justamente hoje, dia em que escrevo, 15/10/2024, foi anunciado pelos jornais o prêmio Nobel de Economia, em que foram agraciados três economistas: James Robinson, Daron Acemoglu e Simon Johnson. Interessante foi a razão dada para a premiação pela Academia Real de Ciências da Suécia: “Sociedades com um Estado de Direito fraco e instituições que exploram a população não promovem crescimento nem mudanças positivas”. Tem a cara do Brasil atual, não é mesmo?

    Certamente, haverá quem contra-argumente, afirmando que a Carta de 1988 foi elaborada por um Congresso com poderes constituintes. Só esqueceram de combinar com o Povo. Ou seja: não lhe perguntaram se gostou do trabalho realizado pelos constituintes. Já que a soberania, como reza o texto constitucional, pertence ao Povo, por que então não consultá-lo? Teria plenos poderes para recusá-la, levando em conta as denúncias de juristas de peso na época, de Roberto Campos, com suas críticas devastadoras, e até de Sarney ao dizer, de público, que, com ela, o País se tornaria ingovernável. Mas não houve um plebiscito, e foi enfiada goela abaixo do Povo.

    Onde está a legitimidade? Rigorosamente, não tem!      

    É curiosa a concepção de que o Brasil é um Estado de Direito, como se fosse uma obviedade. O simples fato de votar não confere a país algum status de democracia. É preciso saber qual o grau de controle que os eleitores têm sobre seus representantes eleitos entre as eleições? No caso do Brasíl, é pífio por não ter o voto distrital puro (ou equivalente) e o chamado recall, a possibilidade de revogar mandatos parlamentares entre as eleições.

    Para piorar mais ainda, temos um STF, cuja legitimidade tem sido questionada por analistas políticos sérios, inclusive por juristas respeitados nacionalmente. A república, sem respeito mínimo pela população, está em estado falimentar. Hora de pensar em alternativas fora do quadrado.    

    **Sobre o autor: Gastão Reis é economista e palestrante.

    **Nota: Está no ar entrevista minha no Brasil Paralelo sobre o Papel do Exército na História Brasileira.

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