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  • 03/12/2023 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    Que o amor é exigente, não há dúvida. Mas sempre esperamos dele benevolências. Sabemos que a compreensão e o perdão fazem parte da essência dele. Na condição humana, o amor de mãe é o que mais se aproxima do Amor Divino, em que brilha a luz da Misericórdia.

    Quem busca perfeição sabe o que é exigência. Há os que cobram muito de si. Há também os que cobram muito das pessoas que amam. Mas quem ama cuida, protege, aconselha. Querer bem é bem querer. Por isso que “mãe é mãe”.

    Fiz esse preâmbulo em torno do amor, para relatar uma exigência feita por minha mãe, leitora assídua, porém com o crivo da crítica bem amolado.

    Lembro o primeiro poema que fiz, mas não sei por onde ele se perdeu. Não tenho a menor ideia do tema abordado. Só sei que o guardei dentro do dicionário capa preta que havia na estante do meu pai. Pensei que, naquele livro grosso, ninguém o encontraria entre tantas páginas. Só que o dicionário, naquela época, era um livro muito usado em casa. Ela encontrou o texto e falou dos meus erros gráficos. Contudo não tocou no tema. Talvez, se tivesse falado do assunto, hoje eu ainda lembraria…

    Abro aqui outro parêntese: sempre achei inconsequente a expressão “Pai dos Burros” para referir-se ao dicionário. Nunca perdi o hábito de consultá-lo. Conhecer palavras, para mim, ainda é uma distração. Até hoje busco palavras dentro de outras. A última foi “oco” dentro de “opaco”, quando me referi a “seres sem luz”, embora saiba que a luz se propaga também no vácuo.

    Mas voltando ao assunto da crítica materna, destaco aqui dois episódios relacionados à memória de uma senhora que está na quarta idade: um dia, na correria, ao ver o tempo passar com tanta pressa, sem ideia para iniciar uma crônica, peguei o parágrafo de um texto que havia escrito antes da pandemia como introdução. Quando a crônica foi publicada neste jornal, ela leu e logo a seguir me ligou:

    – Olha, tem umas coisas aqui repetidas. Acho que você já escreveu sobre isso!

    Confesso que andei “repaginando” alguns textos em situações de emergência. A crônica a que ela fez referência realmente havia sido publicada há dois anos. Depois de ouvir a crítica, passei a admirar ainda mais as memórias maternas…

    Mas o episódio que me motivou a escrever este texto teve início em 13/11/2023, quando publiquei a crônica com o título “A Ponta da Língua”, na qual, falei na minha dificuldade de entender, na infância, a razão pela qual qualquer número multiplicado por zero ser igual a zero. E, para reiterar o meu posicionamento, citei a facilidade de entender o fato de 3 x 3 = 9 (3 + 3 + 3 = 9). Isso foi mencionado apenas como exemplo.  A referida crônica chegou às mãos da minha leitora crítica de marcação cerrada:

    – Você se esqueceu de falar dos nove fora! Três vezes três, nove. Nove fora zero.

    Não deu para conter o riso. Naquele tempo, a tabuada tinha como companheira a palmatória. Tínhamos que saber tudo de “cor e salteado”, sem recorrer aos dedos. E, para completar, era cobrada a prova dos nove nas operações matemáticas. Fazíamos as contas e ainda tínhamos que tirar a prova dos nove.

    Tenho perguntado se “a prova dos nove” está sendo cobrada ainda hoje. A resposta tem sido sempre negativa. Naquela época, o termo “Matemática Moderna” era muito ventilado. Acho que esse movimento ficou estacionado em algum canto da história.

    A expressão “prova dos nove” ficou na memória da geração que conheceu a tabuada via palmatória. No Manifesto Antropofágico publicado em 1928, Oswald de Andrade afirmara que “a alegria é a prova dos nove”. Em “Geleia Geral”, Torquato Neto usa essa afirmativa oswaldiana e saca de forma convicta: “a tristeza é teu porto seguro”. 

    Constata-se que, nas sociedades anônimas, as dores também são anônimas e a tristeza é companheira da solidão.

    Pelo que tenho visto, a expressão “prova dos nove” ficará apenas com a ideia do “teste São Tomé”, do “ver para crer”, da busca de uma comprovação para vencer a descrença.

    O “fazer conta de cabeça” também já não é uma prática constante. O pessoal tem usado mais a calculadora inserida nos celulares. Como raramente uso cartão de crédito, estou mais atento aos trocos das compras. Com frequência, recebo dinheiro a mais ou a menos. Cartão e pix têm sido mais usados. O pagamento em dinheiro, em alguns estabelecimentos comerciais, já encontra resistência.

    A prova dos nove era apenas uma forma de saber se os cálculos estavam corretos. Hoje confiamos mais nas máquinas. O cérebro já não é tão exigido.

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