• A ponta da língua

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  • 19/11/2023 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    Desentendidos, todos somos. Mas cada um em suas especialidades. Diante das minhas desconhecências, tento ser especialista em nada. Já perdi o medo de confessar o que não sei.

    O meu primeiro “não sei” no mundo dos números, não esqueço: vi o esforço do professor de Matemática tentando me explicar a razão pela qual qualquer número multiplicado por zero é igual a zero:

    – Se 3 x 3 = 9, como 3 x 0 = 0?

    O 3 x 3 = 9 (3 + 3 + 3 = 9), eu entendia. Mas o 3 x 0 = 0 não entrava na minha cabeça. Como já havia estudado a tabuada na base da palmatória, passei a enxergar mais lógicas nas palavras. Deliciava-me com a sonoridade: “Constantinopla”, “transatlântico”. “Inconstitucionalissimamente” era a centopeia. Os neologismos tornaram-se di-versões. Até hoje sigo por esta beirada, na cadência do aprender “tudo sobre nada”.

    Na minha infantil concepção matemática, o “1” era considerado elemento neutro, porque não tinha par. Qualquer número multiplicado por ele não se altera. Dizia que o “1” nem primo era.

    Quero deixar claro que não fui tangido do mundo dos números. As palavras sereias me seduziram, encantaram-me. Gosto de vê-las nos mares das metáforas. Para ficar ao lado da Poesia, pedi licença para dedicar-me ao estudo da Língua Portuguesa. Sou um servidor público a trabalhar com a Literatura.

    O tempo carecou-me. Ele também envelheceu as meninas dos meus olhos. Se as aparências se distanciam das minhas retinas; as essências ficaram mais visíveis. E, sem retenções de medo, continuo lendo desregradamente para chegar ao socrático: “só sei que nada sei.”

    Para mim, “com-preender” perpassa pelo “coaprender”, o aprender juntos, para “cooperar”, operar juntos, porque “mestre não é quem ensina, mas quem de repente aprende” como afirmara Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas”.

    As dúvidas sempre serão bem-vindas. Uma amiga, na sexta-feira passada (10/11), disse-me que tem encontrado dificuldades no exercício da linguagem regida pela norma padrão, principalmente no emprego dos pronomes “eu” e “tu”. Já tentaram até persuadi-la, desviá-la do uso das normas gramaticais.

    Como somos de uma geração que precisou definir o “sim” e o “não” para manter o conceito de liberdade, temos um posicionamento flexível. Porém não aceitamos nada sem questionar. Apenas disse a ela:

    – Não é por uma questão de conveniência, mas por obediência à Gramática vigente, os pronomes “eu” e “tu” não devem vir precedidos de preposição em função de complemento. Na condição de completo, devem ser empregados “mim” e “ti” respectivamente. Portanto, “eu” e “tu” devem ser empregados como sujeito. Para consolidar o que havia dito, dei os seguintes exemplos: “há uma grande consideração entre mim e ti”. / “Confio em ti”. / “O problema não ficou somente entre mim e ela”.

    Não obedecem às normas gramaticais as seguintes frases: “nada mais existe entre eu e tu”. / “Eu trouxe esse livro pra tu”. “Tu quer este livro?”

    Ela lembrou a frase muito usada por professores e professoras: “mim não faz nada”. “Isto é para eu fazer”. “Isso é para tu fazeres”…

    Em concursos públicos, em documentos oficiais, é exigido o padrão normativo da língua. O rigor gramatical prevalece na padronização linguística. A licença poética é contextualizada no âmbito da arte literária. A linguagem oral tem as variantes que regem a informalidade. O “eu vi ela”, quando pronunciado, sofre rejeições mais pela cacofonia do que pela desobediência à norma gramatical. O “mandei ele” recai na mesma desobediência, mas não é tão rejeitado. “Eu o vi”, “mandei-o” não são pronunciados com tanta frequência.

    “Isto é para eu fazer.” “Para mim, fazer isto é muito difícil”. A vírgula na segunda frase estabelece uma pausa e determina que o “mim” não é sujeito do verbo “fazer”. “É difícil, para mim, aceitar algumas imposições políticas”. Na forma escrita, a vírgula expõe, com clareza, a pausa que deve ser feita na leitura. Na linguagem oral, essa pausa não fica tão evidente, por isso soa como uma incorreção gramatical.

    Já cantei, inúmeras vezes, “Eu te amo você” de Marina Lima. O “beija eu”, na voz da Marisa Monte, é uma doçura. “Eu também vou reclamar”, do grande Raul Seixas, fazia parte do meu repertório musical acionado na hora do banho. Só que, às vezes, flagrava-me alterando um verso dessa canção. Trocava o “mim” pelo “eu”: “…E a empregada me bate à porta/ Me explicando que tá toda torta/ E que já não sabe o que vai dá pra mim comer.”

    Em síntese, na ponta, a língua é solta. E não há guarda de trânsito nas vias da linguagem. O bom senso também deve prevalecer nas adequações linguísticas.

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