• A páscoa do Hermeto

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  • 21/set 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    Quem dizia que o Hermeto era hermético enganava-se. Ele apenas deixava a música fluir em si.  Era um ritmo de vida, um ritmo em vida. Um som, um solo, um sol, um brilho musical.  Foi por intermédio dele que passei a perceber que a poesia pode vir de qualquer pedra, não somente das que ficam no meio do caminho. Várias vezes, fui tocado por ele… É bom soar e suar sem ser notado…

    No Circo Voador na Lapa, público e Hermeto uniam-se harmonicamente. Eu o vi tocando no Quitandinha em Petrópolis, em programas de tv, em contextos diferentes, mas gosto mesmo é de ouvi-lo em vinil, porque a imaginação flui mais.

    Atonar atonal nem sempre ganha a compreensão pública, uma vez que, ecoa fora do convencional. A música do Hermeto me faz bem. O jeito operário dele trabalhar opera. Opus Hermeto.

    Ele navega entre o clássico e o popular. Por pular o clássico, cai no popular.  Por pular o popular, cai no clássico. Do piano à chaleira, da chaleira ao piano, os compassos são ritmados sem amarras.

    A liberdade para criar se manifesta na espontaneidade, permitindo-se soar e suar…

    Quem quiser imitá-lo, precisa tornar-se multi-instrumentista, precisa viver e conviver com a música. As notas musicais saiam das mãos com marca registrada: Hermeto Pascoal.

    Assisti a vários shows dele, nenhum era igual a outro. Cada show era único.  Orientava o público para acompanhá-lo. E quem se permitia fluía também. Eu o via como um amigo que chama o outro para brincar, mas com uma bola coletiva, sem dono. Cada um no seu passo. O viver não tem partitura. E a música vida precisa ser tocada com todos os órgãos dos sentidos. E com os sentidos de todos os órgãos.

    No dia 13 de setembro de 2025, às 20:22, no hospital Samaritano, os órgãos de Hermeto resolveram fazer uma pausa eterna. Para a morte, não tem conserto. Mas ele já estava universalizado com os seus 89 anos de pura música, de música pura.

    Dessa vez, não deu para improvisar, seus órgãos cansaram. O existir é assim: ninguém vive sem improvisar. A visão de Hermeto era diferenciada… A pele de Hermeto era diferenciada… Os cabelos de Hermeto eram diferenciados… Hermeto em si era diferenciado… Único.

    Ele brotou em solo nordestino, em 22 de junho de 1936, em Lagoa da Canoa, na época distrito de Arapiraca, no Estado de Alagoas. O mundo o conheceu pelos seus concertos…

    – Quem consegue não se emocionar vendo Elis Regina cantando “Asa Branca”, acompanhada por Hermeto Pascoal, no festival de Jazz em Montreux? Momento raro…

    Luís Gonzaga, Jackson do Pandeiro, João do Vale, Sivuca, Cartola, Guimarães Rosa, Câmara Cascudo, Ariano Suassuna, Paulo Freire, Machado de Assis, Heitor Villa Lobos, Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Clarice Lispector, Elis Regina, Cecília Meireles, Clementina de Jesus, Cora Coralina são estrelas que brilham para além das curvas, porque têm luz própria.

    O meu primeiro encontro com Hermeto foi na década de 70, no início da minha adolescência, quando ouvi “Serearei”. Nessa canção, há um coral de porcos. Algo que, na época, foi considerado uma irreverência. Eu o via como mais um a “desafiar o coro dos contentes”.  Ouça o baiãozinho “Porco na Festa”…

    Quando cheguei ao Rio em 1974, já conhecia Hermeto Pascoal. Já me sentia encantado. Fui morar no Flamengo, que fica na zona sul. Quando ia a Campo Grande, visitar uma tia, pegava um ônibus que passava pelo Jabour, na zona oeste, próximo a Bangu. E sempre que o ônibus cruzava o bairro, eu falava internamente: “um dia desço aqui só para conhecer a casa do Hermeto”. Pelo o que ele e os músicos falavam do que ocorria durante os ensaios, levava a imaginar que era uma festa bem descontraída.

    O velório dele foi no Areninha Cultural Hermeto Pascoal em Bangu, o que revela a afetuosa relação entre ele e as comunidades da região.

    No show do Quitandinha, antes da pandemia de 2019, ele fez um desafio: tocou uma música e avisou antes que poderia ser gravada, copiada do jeito que todos quisessem. Quando ele terminou de tocar, falei comigo: “impossível. Ninguém aqui vai conseguir plagiá-la, ninguém aqui tem essa capacidade para improvisar tanto.” 

    Entendi, perfeitamente, o que ele já havia dito: “quando eu faço, a música é uma flor que ponho no jardim para quem quiser levar”.

    Imagino agora Hermeto Pascoal no céu, pegando a flauta dos anjos para tocar o hino nordestino: “Asa Branca”. A Irene do Bandeira vai se divertir!

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